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A eterna musa do poeta Mario Quintana

No depoimento abaixo, a atriz Bruna Lombardi fala sobre a amizade com o poeta e conta como conheceu o escritor.

Por BRUNA LOMBARDI / ESPECIAL PARA O TEMPO
Publicado em 30 de julho de 2006 | 00:01
 
 
 
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Começo pelo fim. Pela última coisa que escrevi para ele, depois que ele se foi.

O ANJO
Onde quer que você esteja
veja que agora
em algum lugar alguém chora
porque você foi embora.
Eu sei que você continua
por aí nesse universo
achando rima pra verso
com humor e melancolia
Perplexo feito criança
diante de cada mistério
sua sutil sabedoria
nota coisas tão pequenas
que outro não notaria
E aqueles que ficaram
por aqui, nessa passagem,
sentem no céu esse anjo
que você sempre escondia
e desejam boa viagem.

Onde quer que você esteja
veja que agora
em algum lugar alguém chora
porque você foi embora.
Eu sei que você continua
por aí nesse universo
achando rima pra verso
com humor e melancolia
Perplexo feito criança
diante de cada mistério
sua sutil sabedoria
nota coisas tão pequenas
que outro não notaria
E aqueles que ficaram
por aqui, nessa passagem,
sentem no céu esse anjo
que você sempre escondia
e desejam boa viagem.

Essa foi a última nota que escrevi para o meu querido amigo Mario que, por acaso, é um dos maiores poetas do Brasil. E talvez a pessoa mais simples e genuina que conheci. Uma lição de humanidade pra quem teve a sorte de conversar com ele. Conheci Mario em Porto Alegre, na Feira do Livro, em 77.

Eu era uma menina lançando meu primeiro livro de poesias "No Ritmo dessa Festa", ele um poeta renomado e querido por todos. De repente levei um susto: Mario Quintana comprou meu livro e estava na fila de autógrafos. Fiquei profundamente sensibilizada com seu gesto.

E com a força que ele deu para os meus textos e o estímulo para os meus futuros livros. Foi um caso de amizade à primeira vista. Era um homem raro, único, como tudo o que ele escreveu, absolutamente encantador e profundamente pessoal.

Morava sozinho num quarto de hotel em Porto Alegre, eu vivia no eixo SP/Rio, mas nos prometemos desde então que tomaríamos chá juntos pelo menos uma vez por ano. E quase nunca quebramos essa promessa. E se, às vezes, ela foi quebrada, admito com tristeza que foi sempre culpa minha e da vida atribulada que vivo.

Mas, tenho a imensa alegria de ter sido uma fiel amiga e correspondente. Trocamos milhares de cartas. E acho que essas são coisas que ajudam a gente a viver. Um dia me confessou que tinha dois pôsteres em seu quarto. Um da Greta Garbo e um meu. Honra maior do que essa não existe.

Artigos me chamavam de musa do poeta. Mas a verdade é que Mario é um poeta que não precisa de musas, porque as deusas da poesia o amavam e protegiam. Ele gostava, e seus textos revelam isso, de coisas simples, cotidianas, rotineiras como sua vida. E cheias de humor.

Tinha ousadia no humor. Via comicidade nas cenas de rua, nas pessoas, nos fatos. Um homem capaz de rir de seus fantasmas. Um homem solitário com imensa compaixão pelo seu semelhante. Aprendi muito com Mario. Coisas pequenas, que não têm preço.

Sentávamos em bancos de jardim, de tarde, num dia de semana em Porto Alegre. Essas conversas tinham um valor incomensurável para mim. Falávamos de tudo. A vida dele, a minha, as coisas em volta, as pessoas.

O resto nos dizíamos por carta. Tesouros. Hoje tenho certeza que essas coisas são o maior luxo de todos. O bem mais precioso, aquele que nenhum cartão de crédito pode comprar. Por isso tenho uma afeição particular por Porto Alegre e por tudo o que a cidade me trouxe.

Pra mim, Mario Quintana continua presente andando devagar pelas ruas, sentado na mesa de um bar. Pra quem o queria transformar em monumento, ele dizia, com seu jeito de rir de si mesmo, "um erro em bronze é um erro eterno". Acredito que sua poesia permanece mais do que qualquer monumento.

A poesia tem seus mistérios e um jeito sorrateiro de vencer o tempo e chegar às pessoas. A poesia entra em quartos solitários e acompanha quem sente que não pertence, quem tem dúvidas, quem chora em travesseiros, quem erra, quem acerta, quem procura.

A poesia é extraordináriamente generosa. A poesia entra clandestina onde alguém precisa dela e só faz bem. Mario e sua poesia estão por aí, continuam. Coisas assim permanecem, são eternas.

Bruna Lombardi é atriz e poeta

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