Disco

Ataque ao conservadorismo

Quinto álbum de estúdio de Ana Cañas, 'Todxs' tem uma forte veia feminista e críticas à sociedade

Por Thiago Prata
Publicado em 20 de novembro de 2018 | 03:00
 
 
 
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Em 1969, a escritora Clarice Lispector (1920-1977) decretou, por meio de sua personagem Lóri, de “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” (1969), que “uma mulher é pura na cama com seu homem” e que “nenhuma mulher é pornográfica”, além de ressaltar que uma figura feminina não pode se calar, após ter passado “uma vida toda calada”.

Ana Cañas, 38, nunca se calou. Nascida três anos depois da morte de Clarice, a cantora e compositora paulistana se tornou uma figura presente na luta pelo feminismo desde seu álbum de estreia, “Amor e Caos” (2007).

E elevou o discurso à enésima potência em seu quinto disco de estúdio – o sexto da carreira – que ela lança agora. Intitulado “Todxs” (Guela Records), o novo álbum prima pelas mensagens ácidas, reflexivas e politizadas – não economizando nas metáforas e em termos que remetem a sexo e orgasmo feminino – em um ataque ao conservadorismo e a várias formas de preconceito.

A imagem da capa (uma cobra entre duas pernas) já dá a pista do que o ouvinte encontrará ao longo das 12 faixas. “Ela evidencia a questão do feminismo e a afronta à cultura patriarcal, à opressão e repressão do corpo e da fala feminina. A cobra no meio das pernas é uma provocação, mas também o empoderamento pelo prazer sexual feminino”, relata Ana.

O título não passa incólume à proposta. “Tem a ver com igualdade e liberdade. Não só para mulheres, mas também para trans, drags, todo mundo. Você pode ser quem você quiser. E a palavra ‘Todxs’ flerta com essa geração da internet, que cria essas palavras. Estamos trazendo todas as pessoas para esse rolê, em que a internet deu voz às minorias”, diz a artista.

A veia irreverente permanece intacta, assim como a militância de Ana, ainda mais engajada após alguns episódios vivenciados recentemente. “As letras são o reflexo do que vivi nos últimos dois anos. Desde que gravei o clipe de ‘Respeita’ (lançado em 2017 e que conta com a presença de mulheres como Maria da Penha, Elza Soares e Karina Buhr), conheci muitas lideranças de movimentos feministas e sociais. Passei a frequentar muitos deles. Uma coisa é ser espectadora, a outra é ir de corpo e espírito às ruas, a assentamentos no interior do Rio Grande do Norte, na quebrada periférica, ouvir o feminismo negro”, diz. “Uso o discurso da Nina Simone, de que é ‘uma obrigação artística refletir meu tempo’. É preciso se posicionar diante do que acontece hoje”, completa a cantora.

Sonoridade

Diferentemente dos elementos de MPB e jazz do debute “Amor e Caos” – que trazia a regravação de “Coração Vagabundo” (Caetano Veloso), pertencente à trilha da novela “Beleza Pura”, da Globo – ou da vibe roqueira do antecessor “Tô na Vida” (2015), “Todxs” é calcado no rap e nas batidas eletrônicas. “Quis repensar meu som e minha estética. Passei um ano no processo de gravação do disco. Foi feita muita pesquisa para ver qual vestimenta eu usaria nas músicas, um processo muito rico e profundo”, afirma.

A combinação do instrumental com as letras e a voz de Ana rendeu alguns comentários “quentes” em suas redes sociais. “Achei massa que muita gente disse que era um disco perfeito para transar (risos)”, declara.

 

Turnê, BH, período ‘sabático’ e legado

Após o lançamento de “Todxs”, a vontade agora é rodar pelo país. “BH está sempre na rota. E vamos chegar juntos”, sintetiza Ana Cañas, sem colocar um prazo para sua vinda à capital. O certo é que a dedicação à turnê será tanta que não há prazo para um próximo lançamento. “Preciso de um tempo sabático porque fritei nesse disco. Quero fazer muitas projeções legais no show, lançar um clipe massa, cuidar dessa parte visual”, destaca.

E juntamente com esse giro pelo país, espera manter o legado de várias personalidades femininas e feministas. “Tenho como inspiração Marina Lima, Rita Lee, Nina Simone, Djamila Ribeiro, Simone de Beauvoir... E também a tiazinha que trabalha num prédio e mora na quebrada, criando cinco filhos, sem o marido, que os abandonou. Essa também é uma grande mulher. Todas são referências”, decreta.

 

Vozes que legitimam a luta das mulheres

“Todxs” chama atenção também pelas parcerias, pelas participações e pelas regravações. Arnaldo Antunes, por exemplo, colaborou em duas letras – para “Independer” (em coautoria com Ana e Taciana Barros) e “Declaro My Love” (assinada pelo mesmo trio e por Lúcio Maia). “O Arnaldo é meu parceiro desde o segundo disco (‘Hein?’, de 2009) e sempre contribui com ideias muito refrescantes e atuais. Tenho uma admiração eterna por ele”, salienta Ana Cañas.

Já as participações ficam por conta do rapper Sombra na faixa-título (assinada por ele e Ana) e Chico Chico, filho de Cássia Eller (1962-2001), numa versão para “Tua Boca”, de autoria de Itamar Assumpção. “Essas vozes enriquecem o trabalho. Eu poderia ter uma mulher cantando comigo, mas preferi ter homens, porque era importante uma fala masculina legitimando essa questão feminina”, afirma.

O cover de “Eu Amo Você”, de Cassiano e Sílvio Rochael e eternizada na voz de Tim Maia, é outro destaque.

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