O sono de Frida servia de termômetro para a banda Constantina. Se ela ficasse dormindo em seu canto, exibindo a serenidade canina durante o ensaio, era sinal de que as coisas iam bem. Caso contrário, a agitação da cadela pela sala fazia os músicos pararem o que estavam fazendo para recomeçar. “Ela recebia todo mundo e nos acompanhou desde o primeiro álbum”, conta Daniel Nunes, integrante e um dos fundadores do conjunto. Em 2016, a mascote se foi de forma “rápida e inesperada”, relembra Daniel. “Como é a própria vida, inesperada e frágil”, compara o entrevistado.
Frida ganhou uma canção em sua homenagem, batizada com seu nome, no novo álbum da Constantina, uma das mais respeitadas bandas do cenário independente de Belo Horizonte. “Foi um momento significativo para a gente restabelecer o cerne da criação desse coletivo. É uma singela homenagem, a primeira vez que fizemos uma música de câmara, sem amplificação nenhuma”, informa. A faixa foi registrada na sala de concertos da Fundação de Educação Artística e abre os trabalhos de “Atrópico”, cujo sentido, encontrado no Dicionário Informal, abre infinitas possibilidades.
A palavra pode significar “marginal”, “oposto de quieto” ou “alucinógeno para livrar-se de pensamentos tristes”, entre outras definições. “Meu irmão (Bruno Nunes, guitarrista) se deparou com essa expressão, que, de certa forma, tem a ver com estar num lugar de independência e proceder, artisticamente, de acordo com o que acreditamos e ocupar esse espaço das bordas”, observa Daniel, baterista do grupo.
O disco começou a nascer em 2015, no meio de um redemoinho político que culminaria com o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão do ex-presidente Lula e a eleição de Jair Bolsonaro. Daniel conta que, “refletindo internamente sobre esse momento de turbulência”, ele e o irmão Bruno, além de, André Veloso (baixista), Viquitor Burgos (clarone) e Lucas Morais (trompete), tinham a intenção de “produzir um álbum com um tom distinto dos anteriores”.
Porém, a marcha dos acontecimentos acabou gerando uma reviravolta nos planos dos integrantes. No meio do caminho, as vidas coletivas deles foram impactadas por problemas pessoais. Bruno e Daniel tiveram que lidar com a morte do pai ao mesmo tempo em que o baixista, André Veloso, foi diagnosticado com um agressivo câncer no baço, hoje totalmente curado, mas que ainda impõe a necessidade de um acompanhamento médico. Foi nesse contexto que todos receberam a notícia de que Viquitor Burgos seria pai.
“Tudo isso trouxe para gente uma mistura, com o sentimento do luto combinado a uma espécie de calmaria, a compreensão de que a vida é essa linha cheia de ‘ritornelos’ (sinal que marca início e fim de trechos musicais na partitura), o retorno nunca é igual, ele traz a potência das pequenas mudanças”, indica Daniel.
Afeto
Foram cinco anos sem apresentar inéditas. Nesse tempo, a trupe colocou na praça “Mexido” (2016) e “Codorna” (2017), com remixes e sobras de estúdio. “Atrópico” chega para completar uma discografia iniciada em 2005, que alcança seu décimo exemplar. No currículo, participações em vários festivais dedicados à música independente no Brasil, com direito a turnês internacionais nos Estados Unidos e no Reino Unido. “A pausa traz um silêncio que é interessante, na perspectiva de se renovar a escuta e entender o porquê de a gente continuar na estrada. Esse coletivo só existe em razão das pessoas”, diz Daniel, que não tem dúvidas em eleger o afeto como mantenedor desses vínculos.
“Quando começamos, há 16 anos, éramos muito jovens, e foi a amizade que nos reuniu. Permanecemos unidos depois de tudo o que passamos porque a energia que se desprende é a do desapego de aprender a viver. Trabalhamos no nível do sensível, cada composição é um redescobrir de sonoridades”, garante o baterista, que analisa o próprio cenário no qual está inserido. “A nossa cena independente é rica e potente de ideias e sonoridades, ao mesmo tempo em que existe uma fragilidade no sentido mercadológico. Por isso é importante a colaboração entre artistas de diferentes áreas”, opina.
Ciclo
Com cinco faixas, “Atrópico” apresenta um ciclo e se encerra com uma nova versão para “Frida”. A repetição, aqui, cumpre o papel do ritornelo mencionado por Daniel, com sua “força transformadora”, como sugeria o filósofo francês Gilles Deleuze. Nesse ínterim, além da faixa-título, comparecem “O Rio Corre para o Mar/Contracorrente” e “Ensinando a Ser Sombra”, com mais de dez minutos de duração cada uma. Curiosamente, a banda se vale do “minimalismo para perfurar as camadas de dureza e beleza”, avalia Daniel.
A fotografia de Cláudio Silvano, que ilustra a capa, revela essa “densidade delicada”, conceitua o músico. Ele esteve recentemente nas manifestações políticas contra o governo do presidente do Chile, Sebastián Piñera, que tomaram conta do país e voltou com uma lição. “Mesmo com o sufocamento provocado pelo poder, o medo não pode nos imobilizar. Temos que prosseguir, sempre”, encerra.
Disco
“Atrópico”, o décimo álbum da Constantina apresenta cinco faixas instrumentais e autorais. “Frida” abre e fecha o CD em duas versões distintas