Por que demorou tanto tempo para Clementina de Jesus (1901-1987) ser reconhecida? “Porque não tinha chegado a hora, né, minha filha”, responde ela própria, interpelada por uma repórter. Noutro momento, Hermínio Bello de Carvalho, que diz não suportar o título de “descobridor de Clementina”, a define como “elo perdido entre o Brasil e a África”.
“Não tem nada descoberto ali, eu apenas prestei atenção. A pergunta é: por que não prestaram atenção antes?”, devolve Carvalho, responsável por levar a cantora para o estúdio de gravação quando ela estava com 63 anos.
Essas são algumas das cenas que compõem o documentário “Clementina”, que estreou no Festival do Rio em novembro e agora chega à 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Convidada pela produtora Mariana Marinho, a diretora Ana Rieper não titubeou. “Foi um ‘convite-presente’. Esse filme se alinha em diversos aspectos com o tipo de tema que eu gosto de tratar, porque ele fala profundamente sobre o Brasil, na perspectiva de suas grandes chagas e belezas”, diz Ana.
A declaração está em consonância com a trajetória da homenageada, que a cineasta faz questão de sublinhar. “O fato de Clementina ser mulher, negra, boêmia, empregada doméstica e neta de escravos a coloca em um lugar para o qual a cultura brasileira branca, burguesa e legitimada não gosta de olhar”, sustenta.
Por essa razão ela vaticina que, embora Clementina tenha nascido no primeiro ano do século passado, a história dela “contém uma incrível perenidade”, algo que o final do longa-metragem apresenta de maneira ao mesmo tempo sutil e incisiva, a partir de um depoimento do historiador de samba Luiz Antônio Simas, que, ao falar sobre o fenômeno da encantaria (manifestação espiritual e religiosa afro-ameríndia), garante que Clementina está viva. “Num tempo de aprofundamento de todas as opressões, a força que a Clementina carrega é fundamental para a nossa existência”, destaca Ana.
Humor
Com depoimentos de Elton Medeiros, Nelson Sargento (parceiros no histórico espetáculo “Rosa de Ouro”, que revelou Clementina ao país em 1964), Nei Lopes, Alcione, Tantinho da Mangueira e familiares, casos do neto e das duas netas da cantora, além de diversas imagens de arquivo que mostram Paulinho da Viola, Nelson Cavaquinho e Cartola, a produção exibe momentos raros, como Clementina cozinhando em sua casa – a entrevista em que ela dá sua receita de feijoada ao programa “Ensaio” também é recuperada –, mas o que permanece em todas as circunstâncias é exatamente o humor.
Fundadora da Portela, antes de estrear num palco Clementina conta que bebeu “até ficar de fogo”. O relato do primeiro encontro com o marido Albino Pé Grande termina com ela dizendo que “os olhos se entenderam”, em tom de galhofa. Questionada sobre estar no auge depois de tantas dificuldades, ela apenas informa que desfruta “o melhor momento de sua gloriosa carreira”. “Vou repetir Oswald de Andrade: ‘a alegria é a prova dos nove no matriarcado de Pindorama’. Essa capacidade de celebração e o desejo de festa ninguém nos tira”, afirma Ana. A percepção encontra eco na origem dos jongos cantados por Clementina, a rainha Quelé.
Legado
Diretora de “Clementina”, Ana Rieper admite que o filme jamais teve a pretensão de dar conta de “uma narrativa total” sobre a homenageada. Sem estabelecer uma cronologia, a escolha foi “falar de Clementina como portadora histórica da cultura afro-brasileira”, informa Ana. A produtora Mariana Marinho completa com outro aspecto importante. “Abrir espaço para mais mulheres. Clementina sustentava toda a família e nunca perdeu a doçura”, assegura Mariana.
Crítico musical, Tárik de Souza guarda em seu precioso acervo os cinco discos lançados por Clementina e mais todos aqueles em que ela fez alguma participação. “A forte presença africana que surge na música brasileira quem molda é a Clementina, com um repertório que não se conhecia e que vinha da memória dela, transmitido pela oralidade. Aquela maneira de cantar e a postura no palco influenciaram muito o João Bosco”, observa Souza.
Para ele, assim que apareceu para o grande público o talento de Clementina foi logo reconhecido. “A obra dela não se parecia com nada, não tinha mentira e nem era fabricada, dava a impressão de ter brotado da terra, com uma verdade cultural muito espontânea”, conclui.