Flaira Ferro segura um estilhaço de vidro que reflete a sua própria imagem, enquanto olha desafiadoramente para a frente. A imagem ilustra a capa de “Virada na Jiraya”, segundo disco da cantora pernambucana. A expressão que batiza o sucessor de “Cordões Umbilicais” (2015) se popularizou como sinônimo de raiva e indignação. Os dois sentimentos perpassam as 12 faixas do álbum, com doses frequentemente elevadas.
Flaira assina a maioria das canções, em parcerias com Igor de Carvalho, Ylana e Cristiano Meirelles. Para passar o seu recado, Flaira abre mão dos volteios e não usa meias-palavras, como fica escancarado em “Faminta”. “Eu tenho fome/ Eu sou faminta/ Eu quero comer você/ Eu quero comer a vida”, dispara no refrão. Noutro trecho, Flaira debocha com voz infantilizada: “Eu canto suave/ Eu não desafino/ Eu faço tudo certinho”.
“Ótima” segue a mesma toada, com a pressão rítmica lá em cima. “Germinar” oferece breve momento de descanso e interiorização. O alvo de Flaira é o mundo exterior e as condições de que ela dispõe para modificá-lo. A aposta em “Estudantes” é na juventude, e o inimigo também é apresentado sem disfarces. “Mesmo que o destino/ Reserve um presidente adoecido/ E sem amor/ A juventude sonha sem pudor/ Flor da idade, muito hormônio/ Não se curva ao opressor”, entoa a intérprete.
“Suporto Perder” traz dueto com Chico César e denuncia o machismo tóxico. O que ocorre, no entanto, ao longo do álbum é que a disposição para denunciar as mazelas de um mundo repressivo e em compasso de regressão quase nunca se mostra acompanhada de formas consistentes para moldar esse discurso. Uma das exceções é a ácida “Essa Modelo”, com descontraídos jogos de palavras. Mas, via de regra, o simbolismo fica mesmo para escanteio.
“Lobo, Lobo” e “No Olho do Tabu” retomam o papo reto, da mesma maneira que “Revólver” e a crença de que “uma cidade triste é fácil de ser corrompida”. “Maldita”, com o suntuoso piano de Amaro Freitas, tem menos certezas e mais complexidade. “Casa Coração”, de Isabela Moraes, abrilhante o trabalho com seu misticismo existencial. “Coisa Mais Bonita”, já lançada como videoclipe, exalta a liberdade sexual da mulher, numa fina e rara combinação, que conjuga ação com poesia.