Cinema

Quem tem medo de branco?

Série “Cara Gente Branca, da Netflix, e filme “Corra!, que estreia nesta quinta-feira, colocam em pauta o racismo pós-Obama

Por Daniel Oliveira
Publicado em 17 de maio de 2017 | 03:00
 
 
 
normal

Professor de comunicação da PUC Minas, e negro, Pablo Moreno Fernandes Viana adquiriu o costume de fazer o que ele chama de “teste do pescoço” ao entrar nos ambientes onde passou a circular devido à carreira acadêmica. “Viro para um lado, para o outro, e conto quantos negros têm ali. Em geral, é minoria, apesar de o número estar crescendo entre os alunos”, descreve.

O teste é uma boa descrição do cenário atual. Alguns negros conseguiram ocupar espaços antes reservados exclusivamente a brancos, mas ainda são uma ínfima minoria neles. E a sensação de deslocamento e opressão causada por isso e pelo racismo velado que ainda persiste nesses lugares é a matéria-prima de dois produtos que têm gerado discussões acaloradas: a série “Cara Gente Branca”, disponível na Netflix, e o filme de terror “Corra!”, que estreia nesta quinta-feira (18).

“Os dois incomodam porque botam o dedo na ferida: mostram que ainda somos uma sociedade racista, hipócrita pra caramba, e não sabemos discutir isso”, argumenta Viana. “Cara Gente Branca”, adaptada pelo cineasta Justin Simien a partir de seu filme homônimo, retrata o cotidiano de um grupo de alunos negros em uma universidade de elite norte-americana – majoritariamente branca. E “Corra!”, estreia do diretor Jordan Peele (da série cômica “Key & Peele”), acompanha o fim de semana em que o fotógrafo negro Chris (Daniel Kaluuya) é levado pela namorada branca Rose (Allison Williams) para conhecer os pais “liberais” dela.

São duas situações claramente “pós-Obama” que, para muitos, significam o fim do racismo. “Para os brancos, é ‘elegemos um presidente negro, pronto, acabou o racismo’. E para os negros, é exatamente o contrário. Isso acentua todos os tensionamentos trazidos por questões raciais. E, com o poder da cultura midiática norte-americana, isso é amplificado no mundo todo, dando voz e reverberando em outros lugares”, analisa o professor.

Para Viana, o diferencial dos dois produtos é que eles não apontam o dedo para o preconceito declarado do caubói ou do neonazista. E sim, para aquele intelectual, liberal, que votou no Obama, tem um amigo negro – e acha que isso significa que ele é incapaz de atitudes ou discursos absolutamente racistas.
Segundo ele, o fato de serem artistas negros (Simien e Peele), falando de um ponto de vista negro, ajuda a emprestar empatia e verossimilhança às narrativas. Não por acaso, as cenas mais tensas, tanto na série quanto no filme, refletem o resultado mais palpável e inegável desse racismo velado e institucionalizado: a presença policial como maior ameaça à vida negra – “cara gente branca, a cor da minha pele não é uma arma. Você não precisa ter medo dela”, dispara a locutora do programa de rádio que dá nome ao seriado da Netflix. “Porque falta vivência. Pessoas que nunca deixaram de ser atendidas em uma loja porque o atendente achou que você não ia fazer diferença, ou que nunca foram seguidos pelo segurança no shopping, não sabem o quanto isso dói”, explica Viana.

O professor acredita que o maior mérito dessas obras é despertar a atenção e a consciência dos próprios negros para esse tipo de racismo. Mesmo Viana afirma que só percebeu que havia apenas três ou quatro professores negros em seu departamento quando ouviu isso de uma aluna. “Todo mundo que já passou por uma experiência dessas, ao ver a série ou o filme, vai ter mais consciência do que viveu. E se sentir encorajado a levantar a voz e combater isso. A necessidade de se posicionar quando o policial do campus ou do trânsito partir para cima do rapaz negro para impor autoridade”, avalia.

Por outro lado, a abordagem cômica e debochada com que Simien e Peele fazem seus argumentos incomodou e encontrou críticos – a maioria, brancos. Invertendo a lógica milenar da ficção contemporânea, “Cara Gente Branca” e “Corra!” retratam toda a diversidade da comunidade e dos personagens negros, enquanto os brancos são apresentados como um estereótipo cômico e, por vezes, exagerado – por exemplo, “cara gente branca, vocês estão no Instagram e gostam de fazer caminhadas na natureza. A gente já entendeu”. O resultado mostra aos brancos como o negro vem se sentindo desde sempre, mas teve gente que não gostou e clamou “racismo reverso”.

“Para mim, termos como esse, heterofobia e machismo ao contrário são tentativas de desqualificar as estratégias de empoderamento e representação dessas minorias. Quando eles aparecem, é porque esses produtos estão começando a tirar as pessoas da zona de conforto delas”, contrapõe Viana. Ele acredita que esse tipo de discurso é uma resposta do opressor a essa “queda de braço complicada” em que o negro sempre teve menos força, mas de repente começa a lutar por mais espaço. “Isso gera uma reação conservadora, mesmo entre os mais liberais. ‘Se eu sempre tive o espaço todo para mim, por que vou te dar um pouco agora?’”, provoca.

O professor finaliza apontando a importância dessas obras no Brasil, em que o tensionamento racial ainda é amenizado na TV e no cinema. “Vejo isso mais na música, em artistas como MC Carol, Karol Conká e Linn da Quebrada colocando questões raciais e de gênero de forma muito potente em suas obras. Mas espero que a série e o filme venham pautar e dar fôlego para que produções brasileiras também coloquem isso em evidencia”, conclama.


“Corra!”

Adivinhe quem vem para...?

Longa de estreia do diretor Jordan Peele, terror foi um dos maiores sucessos de crítica e público do ano nos EUA

FOTO: Universal /Divulgação
3
Cilada. Allison Williams e Daniel Kaluuya vivem casal interracial em parábola do ressentimento branco nos EUA pós-Barack Obama

Em “Humble”, hit de seu álbum “DAMN” (considerado o disco do ano nos EUA), Kendrick Lamar conta uma série de vantagens – como receber mensagens de Barack Obama, andar de Mercedes e ser considerado o melhor rapper do país. E, no refrão, responde a esses “trunfos” com “vadio, seja humilde. Vadio, senta aí”.

Porque brancos até aceitam que negros ambicionem mais, galguem degraus, atinjam o sucesso. Mas se eles começam a aparecer demais, a ocupar espaços e insinuar que são melhores que brancos, são outros quinhentos. Isso incomoda. É indelicado. Eles precisam saber seu lugar.

E a forma de colocá-los nele, via de regra, recorre à violência. E é com ela que o protagonista Chris (Daniel Kaluuya) se depara em “Corra!”. Fotógrafo nova-iorquino, ele é levado pela namorada branca Rose (Allison Williams) para conhecer os pais dela, o neurocirurgião Dean (Bradley Whitford) e a psiquiatra Missy (Catherine Keener), liberais “que teriam votado em Obama pela terceira vez”.

Chegando na casa de campo onde eles vivem, Chris é informado de que o fim de semana contará com uma festa em memória aos avós de Rose. E... bem, o que acontece então é uma releitura surrealista e nada conciliadora do clássico “Adivinhe Quem Vem para Jantar?” – relevante e assustadora exatamente porque não é muito distante de certos discursos políticos atuais.

O protagonista passa a ser o único negro, com exceção dos empregados, no meio de uma manada de brancos que insistem não serem racistas. E para provar isso, falam com ele sobre Tiger Woods ou basquete – da mesma forma que pessoas que não querem parecer homofóbicas começam a falar de Madonna ou RuPaul quando estão perto de um gay.

Que o diretor e roteirista Jordan Peele explore com precisão cirúrgica o humor dessas cenas não é surpresa – afinal, ele é metade da finada, e ótima, dupla de comédia “Key & Peele”. A grande revelação de “Corra!” é o talento com que ele conduz essa primeira metade para o inacreditável episódio de “Além da Imaginação” da segunda, com a ajuda de um roteiro simples e bem amarrado e um ótimo elenco.

Peele não reinventa a roda. Ele usa os recursos típicos do terror, como a câmera que gira para revelar algo ou alguém assustador à espreita do personagem. Mas aqui, o movimento, usado reiteradas vezes, é um reflexo da estrutura do próprio filme, que revela haver um lado negro – ou melhor, branco – por trás do mais simpático dos liberais.

Além dessa câmera, a ótima direção de arte é um prenúncio do que está por vir. Rusty Smith constrói uma mansão vitoriana e imponente – cravada em madeira e privilégio, e completamente oposta ao estilo urbano de Chris – que, muito antes de alguém gritar “corra!”, já deixa bem claro que o protagonista não pertence ali.

Mas a enorme guinada no tom do longa não funcionaria sem o talento do elenco. O rosto vulnerável de Kaluuya é a escolha perfeita para o inseguro Chris, que, como vários negros na mesma situação, se preocupa em não incomodar os outros com seu desconforto. Williams reforça, como já havia mostrado em “Girls”, que não tem medo nenhum de abraçar os aspectos mais insensíveis e ofensivos do privilégio branco. E Keener é uma presença intimidante e assustadora, como a típica psiquiatra branca que fica perguntando com uma voz monotônica sobre sua mãe.

O resultado disso é uma parábola incômoda sobre o maior fantasma que a sociedade ocidental tenta ao máximo esquecer. Uma alegoria perversa que explora os piores medos dos negros e os fetiches mais secretos dos brancos – e assusta porque não é tão fantástica quanto parece. É desconfortável, divertido e pertinente, como todo bom filme deve ser.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!