Cinema

Relicário imenso desse amor 

Documentário “Cássia faz um tributo à trajetória e ao legado da cantora Cássia Eller para os fãs, a música e o Brasil

Por Daniel Oliveira
Publicado em 21 de outubro de 2014 | 04:00
 
 
 
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São Paulo. O diretor Paulo Henrique Fontenelle (dos documentários “Loki” e “Dossiê Jango”) definiu bem a experiência de assistir ao seu novo trabalho, “Cássia”, no debate após a sessão do longa na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. “Você está vendo e se lembra de quando ouviu aquela música pela primeira vez. Vira um filme não só sobre a Cássia, mas sobre nossa história pessoal”, reflete.

E é bem isso mesmo: ver o documentário sobre a cantora Cássia Eller é como se reunir com um grupo de conhecidos para relembrar uma grande amiga que não vai voltar mais, mas que também não está morta. Continua viva nas suas músicas, no seu legado, na sua revolução. Não por acaso, foi uma experiência similar com a canção “Relicário” que levou Fontenelle a realizar o longa.

“Ela me lembra de uma época em que eu estava muito apegado a um grupo de amigos que não existe mais”, ele recorda. E foi ouvindo a versão da música no “Acústico MTV” que uma luz se acendeu dentro dele. “Pensei: tenho que fazer um filme sobre essa mulher. E fiz um documentário inteiro só por causa dessa música”, brinca.

Mas se a decisão foi simples, a autorização, nem tanto. No seu primeiro contato com Eugênia, viúva da cantora, as más experiências fizeram com que ela recusasse a proposta de Fontenelle. “Umas semanas depois, o Chicão viu o ‘Loki’, gostou e convenceu a mãe a autorizar o filme”, conta o diretor sobre o filho de Eller, que faz um breve depoimento no documentário, revelando uma timidez e um brilho assustadoramente idênticos aos da mãe.

Esse contato inicial foi em 2010. Em 2011, o cineasta viajou para Maceió para a primeira filmagem: um show em que a antiga banda de Cássia faria um tributo à cantora. Foi lá que ele ouviu as primeiras de muitas histórias sobre ela, incluindo uma das que mais lhe marcou: no auge do sucesso, a artista fazia pequenos shows em clubes no interior sem que ninguém soubesse. “Ali eu descobri que essa era a alma do filme: uma mulher que está ali só para cantar, independentemente do dinheiro ou do sucesso”, sintetiza, sugerindo um ponto comum entre a cantora e Arnaldo Batista: dois músicos que viveram em função da arte.

“Cássia”, o filme, é recheado desses causos. Alguns que os fãs já conhecem, mas querem ouvir de novo, outros mais detalhados, desde os bastidores do show no Rock in Rio e do “Acústico”, a gravidez, as relações com Eugênia e Lan Lan, as drogas, a timidez. E mesmo quem acha que viu tudo isso no musical que passou recentemente por Belo Horizonte vai se desidratar em lágrimas de novo, em depoimentos como quando a mãe de Cássia descreve como ficou sabendo da morte da filha, ou quando Nando Reis revela que escreve músicas até hoje para a cantora.

“A gente já ouviu tanta música, que achei que as informações fossem mais importantes”, explica Fontenelle, apontando para a parcimônia do filme no uso das icônicas canções de Eller. Bem além do recorte feito pelo musical, o documentário consegue abordar temas como o impacto da morte da cantora sobre os direitos civis no Brasil, resultando na primeira concessão de guarda a um parceiro homoafetivo por aqui. Ou o desabafo de Eugênia sobre chegar com Chicão no Rio após o enterro de Cássia, e ver a cidade coberta de outdoors com a abominável capa da revista “Veja”, associando a morte da parceira às drogas – o que o laudo médico provaria estar errado. Permite ainda, claro, que especialistas e amigos prestem seu tributo à cantora, como um jornalista que define que “a maneira de Cássia Eller de interpretar a música dos outros era sua forma de compor”.

É esse mosaico de contribuições e declarações de amor que reproduzem na sala de cinema o espírito de alegria e honestidade que Cássia criava em seus shows e que fazia com que ela parecesse parte de nossas vidas.

O documentário de Fontenelle pode não trazer nada de muito novo, mas traduz na tela essa intérprete única, de um timbre grave impossível de escutar com o ouvido, porque batia direto no coração.

Emoldurando esse vasto material, “Cássia” é iniciado pelo texto de uma carta escrita pela cantora. Ele é interpretado por Malu Mader, que entrou no projeto na última semana, quando o filme tinha que ficar pronto para um festival e o cineasta não encontrava ninguém certo para o trabalho. “Lembrei do tom grave da Malu porque queria uma voz que fosse parecida, mas não tão identificável e não imitasse a da Cássia”, justifica.

Além da atriz, o filme conta com a presença de Nando Reis, Zélia Duncan, Marcelo Saback – e originalmente eram muitos mais. “A primeira versão do longa tinha três horas, com depoimentos do Milton Nascimento, Luiz Melodia, Frejat”, suspira o diretor sobre os cortes necessários. Mas aquele que mais lhe doeu foi tirar uma sequência com Reis tocando “All Star” e contando como ele escreveu a música para Cássia. “O DVD vai ter muito material especial”, promete, comprovando que, se a dor pela perda da cantora ainda “não tem explicação”, seu legado também não tem fim.

O repórter viajou a convite da Mostra Sâo Paulo

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