Foi ainda durante o período mais difícil (até agora) da pandemia do novo coronavírus que o piano de André Mehmari se juntou à voz de Mônica Salmaso para o registro de "Morro Velho", canção do emblemático disco "Travessia" (1967), de Milton Nascimento. Nascia ali o embrião do show "Milton", que a dupla traz a Belo Horizonte neste sábado (28), para única apresentação.
Na verdade, o talento do mais mineiro dos cantores e compositores cariocas já era uma unanimidade entre os dois, de modo que difícil mesmo foi selecionar as músicas que entrariam no projeto, entre as tantas que atravessam o coração da cantora e do instrumentista. "Não sei quantos litros de água já chorei ouvindo as músicas de Milton", diz Mônica. Mehmari completa: "Venho falando da música dele desde que eu tinha 13 anos de idade, em todas as minhas oportunidades de tocar, seja no Brasil ou fora. Além do cantor que ele é, sempre digo da importância do compositor. Uma voz composicional brasileira mestiça, íntegra e que representa o que de melhor o país produziu como civilização e como encontro social".
Na verdade, André Mehmari deu passe livre a Mônica para que ela mesma fizesse a seleção do repertório. Seu único pedido foi a inclusão de "Paixão e Fé", parceria de Tavinho Moura e Fernando Brant e imortalizada na voz de Milton. A justificativa: "Queria muito ouvi-la na voz da Mônica e tendo o meu piano. No mais, o que fosse escolhido por ela, eu aceitaria, porque realmente gosto de tudo dele", justifica.
"('Paixão e Fé") Não é uma composição do Milton, mas é muito forte com ele", completa Mônica, acrescentando que muitas das letras das canções presentes no repertório da dupla se afinam ao momento atual. "A gente levantou esse repertório em pleno isolamento, na pandemia, e nesse momento da realidade política do Brasil e do mundo, de coisas muito absurdas que têm acontecido. E cantar músicas como 'Credo', 'Paula e Bebeto', cantar Drummond, falar de Guimarães Rosa, isso tudo é muito importante, fundamental. Uma espécie de remédio que a gente tem como resposta a tudo isso, da importância da beleza, poesia, da força, da palavra, que nos devolva a nossa identidade. Então, essas músicas, que já eram lindas e referências, ganham um outro sentido neste momento".
A citação a João Guimarães Rosa vem por conta de "A Terceira Margem do Rio", parceria de Milton e Caetano Veloso. "Música que fala do conto homônimo, maravilhoso e importantíssimo do escritor. Aliás, a gente até inseriu, na nossa performance, um trecho dele, e pegou dois instrumentos, saindo (nesta faixa) da (do formato) voz e piano que pauta quase todo o repertório. O André, ele tem marimba de vidro - inclusive feita pelo Leandro (César), que é mineiro, e (trilha) um caminho que vem do Uakti - que dá a sensação (em termos de sonoridade) de água. No show, a gente vai fazer com uma marimba de orquestra. E um outro (instrumento), metálico, que eu chamo de bolota (risos). Com ele aconteceu algo muito estranho, porque é um instrumento de poucas notas, então, não há muito o que fazer (com ele) se não estiver no tom da música. No período da gravação, eu o avistei num cantinho, no meio das coisas que o André coleciona. Por curiosidade, peguei e, quando vi, das poucas notas que ele possui, tem o arpejo da melodia. Na hora, falei: 'Jesus do céu, olha isso aqui, que a vida mandou!'. Uma coisa que musicalmente, textualmente, é muito importante para o show. Foi uma coincidência, sei lá se elas existem, em relação à instrumentação", analisa Mônica Salmaso.
Ela também destaca "A Lua Girou", música que, entende, enfatiza o respeito que Milton devota à tradição. "Isso nele é tão forte, tão tocante. Na verdade, penso que a gente precisa urgentemente 'voltar para casa', em muitos sentidos. Retomar a identidade do Brasil. Minas Gerais é um estado no qual essa característica (o respeito à identidade) é mais forte que outros lugares. O estado tem um olhar amoroso à tradição e às culturas populares, e em todas as áreas, o que não acontece em todo o Brasil. E se a gente já estava devendo isso, (não bastasse) ainda fomos tomados por uma onda muito estranha, que nos afasta ainda mais da nossa cultura. Talvez, a partir desta experiência que vivemos (da pandemia), terrível, possamos compreender a importância desse respeito e realizar esse Brasil que se gosta, que se entende, que se identifica com a cultura que produz. Se há um lugar no qual acredito que haja a resposta do que o Brasil pode ser, se ele quiser, se encarar essa responsabilidade que tem, é o da cultura que o país produz".
CREDO
Não menos importante é a presença de "Credo". "É de encher a boca cantar 'tenha fé no nosso povo que ele resiste'. Naquele momento em que a gente estava isolado, poder cantar (essa letra), foi muito potente, muito maravilhoso. Um remédio mesmo, me sinto fazendo um processo de cura", enfatiza.
Por último, mas não menos importante, Monica fala sobre a importância de realizar este show na capital mineira. "Tem um plus de emoção, é óbvio, né? Cantar o repertório do Milton Nascimento para a plateia mineira é uma celebração da vida. E, ainda, no Palácio das Artes! Então, eu já estou por conta (a entrevista foi feita no dia 17 deste mês), ansiosa para chegar e louca para ver este público no teatro, torcendo muito para que todo mundo possa ir - tenho tantos amigos que sei que vão estar... É um público que a gente adora fazer, eu gravei Corpo de Baile neste teatro, com esse público. Então, pra mim é uma celebração com um frio na barriga", admite.
MÔNICA SALMASO & ANDRÉ MEHMARI
Quando: Sábado (28), às 20h30
Onde: Grande Teatro Cemig no Palácio das Artes (Avenida Afonso Pena, 1537, Centro)
Quanto: Entre R$ 40 e R$ 120
Informações e vendas: eventim.com.br/artist/milton-monica-andre/