Tempo de livros

'Nuvilíneas' traz uma amostra da poesia visceral de Lara de Paula

Livro reúne relatos poéticos vividos por ela durante o início da pandemia, inicialmente postados em um perfil do Instagram, intitulado “Uma gota por dia

Por Patrícia Cassese
Publicado em 19 de outubro de 2021 | 12:43
 
 
 
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Durante os primeiros meses da pandemia de Covid-19, ou seja, no ano passado, a poeta mineira Lara de Paula vivenciou mudanças drásticas na sua rotina, a começar pelo espaço de convivência diária. De março a maio de 2020, esteve quarentenada na casa de sua mãe, em Sete Lagoas, tendo posteriormente retornado a Belo Horizonte, onde reside. "Foram momentos difíceis, de angústias e incertezas que assolaram amigos e familiares - e, claro, também não pude passar inerte". Neste período inicial de reclusão, impossibilitada de dar sequência à sua pesquisa na universidade e tampouco no trabalho presencial - com a poesia nos saraus e slams -, Laura voltou-se para as atividades possíveis que lhe traziam conforto e perspectiva curativa: as artes e a escrita, principalmente.

Foi quando começou a escrever o material - que posteriormente deu corpo ao livro "Nuvilíneas" - enquanto postagens em um instagram anônimo, chamado “Uma gota por dia”. Nele, Lara estabeleceu o ritmo de uma postagem diária contendo reflexões poéticas sobre o vivenciado no dia. "Foi a forma que encontrei de fazer registros sobre os meus sentimentos durante este processo, bem como exercitar a criatividade e manter viva em mim a chama poética, mesmo a despeito de todo o caos externo. A princípio, esses relatos funcionavam como uma bússola para mim também, pois, ao manter o anonimato da autoria, eu conseguia observar se o conteúdo despertava interesse mesmo sem a pessoa me conhecer. Estes retornos positivos foram me empolgando com o material, até que durante o período de chamada para o edital da lei Aldir Blanc de MG, de publicações literárias, tive a ideia de enviar o material a fim de transformá-lo em um livro", diz, frisando, porém, que não era o objetivo inicial da escrita alçar voo em outros suportes. "Foi uma grata felicidade", confessa, sobre o livro lançamento meses atrás.

A obra reúne textos escritos nos 170 dias iniciais da quarentena, totalizand 52 relatos. "Durante este período, a escrita foi acessada como ferramenta para suportar as intempéries de um mundo adoecido. Para saciar a fome de sentir o mundo, para calar o medo do fim de tudo, para fazer fluir aquilo que a expressão oral por vezes não conseguia", relembra. Os relatos foram livremente inspirados em suas vivências cotidianas, e ela conta que sua predileção era postá-los à noite, ao final do dia. "Serviam como pílulas de uma recapitulação poética, um relicário daquilo que houvesse me atravessado durante as últimas 24h. Assim, minha preferência era por escrever logo antes de dormir". 

Para o livro, Lara frisa o trabalho de edição e seleção minucioso, contando primeiro com a leitura crítica do Renato Negrão ("crucial para a percepção de potências e possibilidades narrativas'), e, na sequência, dos vários encontros com o editor e responsável pelo projeto gráfico, Iago Passos. "Que muito cuidadosamente foi destrinchando comigo o texto, a fim de observar melhor os desenhos de nuvens de pensamento". 

Por fim, prossegue ela, os relatos selecionados foram escolhidos e organizados visando presentar este anuviamento, bem como a sensação de passagem de tempo do cotidiano, mas sem amarrar-se exclusivamente à temporalidade pandêmica ("não queria que fosse taxado como apenas um livro de quarentena"), e extraindo-se os excessos e relatos que fugissem muito ao que ela nomina "aura geral do corpo final do texto".

Confira, a seguir, outros trechos da entrevista

O que a poesia, a escrita, de um modo geral, te trouxe em termos de alento, conforto?

A palavra, creio eu, carrega em si uma potência curativa, por conter o impulso de desejo de comunicação, significação do mundo. Ao traduzirmos em palavras nossos sentimentos, permitimos que outros indivíduos compreendam aspectos profundos e delicados do nosso ser e isso contribui para que floresçam interações baseadas no afeto e no respeito a quem se é. O diálogo que a literatura estabelece, não apenas com indivíduos, mas com histórias e dores coletivas, também auxilia nesta compreensão/tradução de mundo, e na reflexão sobre a necessidade e possibilidade de criação de novas narrativas. Assim, a escrita descortinou para mim um universo de possibilidades, dentre elas, de reconhecer minhas próprias particularidades no âmbito do sensível, do artístico e do criativo, e compartilhar de experiências de comunicação e compreensão muito únicas, que a escrita não-poética nem sempre torna possível ou eficaz. A poesia, então, vem como um saber ancestral curativo, tal qual uma reza, uma benzeção, uma história de griô, uma pajelança... Ela vem como riso de criança, como choro de viúva, vem na verdade nua e crua da imersão nos sentimentos, e seus fragmentos traduzíveis que promovem não apenas este acalanto na alma, mas também a apreciação intelectual de construção de pensamento crítico e possibilidades criativas.

Neste momento da pandemia, como tem se sentido? Que sentimentos ainda te atravessam? 
Atualmente, meu sentimento é um misto de expectativa e cansaço. Cresce um desejo de sossego e descanso, a vontade de ausentar-me das novas tecnologias e experimentar novamente a tranquilidade e a natureza. Ao mesmo tempo, há também presente uma energia curiosa de euforia, com tudo que venho plantando durante este período e já despontam frutos bonitos, aqui e ali. Estou muito contente com os resultados do processo de produção do 'Nuvilíneas' e me sentindo extremamente grata e acolhida por toda a equipe envolvida, o que também contribui para que o coração grite “Avante!”. 

O que mais te decepcionou?
Dentre as inúmeras decepções vividas nestes últimos anos, creio que o desmoronamento da sociedade sob os ombros de suas minorias tem sido das maiores dores difíceis de processar. Os ataques às populações indígenas, o desmatamento desenfreado, o assassinato da população negra, a negligência governamental à saúde pública... É longa, infelizmente, a lista de mágoas. No entanto a esperança, teimosa sobrevivente,  faz-se presente e se renova, com a indisciplina da resiliência. 

E o que te acende as fagulhas de esperança na humanidade?
A despeito de todo o caos, o mundo se nega a não produzir beleza, e meu olho se nega a não vê-la. Me afeto muito com respiros, dos mais mínimos. Aprendi a enxergar a força existente nos vislumbres de poesia do cotidiano, estão nas pequenas coisas as fagulhas de esperança na humanidade. Sejam informações de bem estar e conquistas de amigos, nas raras notícias boas nos noticiários, a vacina ao vírus, no desabrochar de uma flor no vaso de plantas, num por do sol multicolorido, eu respiro, sobrevivo e insisto que a poesia muitas vezes é o ar que passa e permite sentir algum alívio, uma impressão sonhadora de que tempos melhores ainda hão de vir.

Seguiu (segue) escrevinhando?
Sigo arriscando experimentações poéticas, agora em menor periodicidade e sem tanta disciplina, mas de forma mais espontânea e pontual. As escrevinhanças, entretanto, têm se voltado mais para a poesia versada que a prosa poética, tendo me afastado por um tempo do universo da crônica. É um desafio, no entanto, viver a arte em comunhão com as exigências outras do dia a dia.

Confira, a seguir, quatro escritos de Lara, escolhidos e esmiuçados por ela

“acordar às seis, me lavar, fazer exercício leve, tentar meditar, banhar. fazer desjejum às dez, resolver problemas para não pensar, começar a cozinhar. almoçar até às treze respeitando a ordem: doce, salgado, amargo. lanche da tarde às dezesseis. dar notícias aos queridos em todos os horários. trabalhar, viver. às dezenove, cear. nesse meio tempo, lamber tudo com o olhar.”


Lara. Este foi um escrito feito durante o início da maratona de escrita, quando mesmo com todas as adversidades eu ainda insistia em manter uma rotina fixa, numa tentativa de estabelecer algum controle ou constância na vida. Me surgiram as palavras como ladainha, algo repetitivo que toma corpo no convívio até fazer sentido sozinho. Há, no entanto, o contraste entre o mecânico e o intuitivo, este “lamber tudo com o olhar” que é em si insubmisso, não se encaixa nos limites da minha organização.

“a liberdade me grita pelas esquinas
de forma nada pudica, escandalizada
me convoca a encontrá-la
brinca de pique-esconde pela estrada
rio alto, durmo um pouco,
gozo de novo
não me mordo,
um dia a gente se acha”


Lara. Este poema me é muito querido. Sempre me agradou a ideia de ser livre, sendo um ser que possui um corpo muitas vezes reduzido às suas amarras sociais. A pandemia tornou este desejo ainda mais latente, pois a reclusão cerceou de primeira nossa liberdade de sair, de tocar, de respirar livres. Encaro, no entanto, como um afastamento e não um rompimento, e tento neste texto mostrar que é mais uma questão de tempo e não de impossibilidade.


“o passado se foi. não tão inacreditável e nem tão reconfortante assim. foi-se varrido, lambido pelas chamas que formaram cinzas no dia seguinte. e quem ficou, que limpe. não existe exatamente limpeza depois de um incêndio. existe só rejeito. arruma daqui, ajeita de lá, cuidado com os cacos. tem coisa que se foi pra sempre e é isso. não dá tempo de chorar em cima dos vestígios (você já viu a bagunça que vira cinza molhada?). dá pra ir indo, seguindo, mais um pouco, e, sempre que possível, limpar a fuligem.”

Lara. Este foi um dos relatos mais difíceis de serem escritos, e remete ao meu primeiro dia de trabalho no resgate arqueológico do incêndio ocorrido na Reserva Técnica do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG. O processo de resgate foi um misto de sentimentos, pois ao mesmo tempo que trazia alento estar em contato cotidiano, ainda que sob o distanciamento, com pessoas queridas que há muito não via, o motivo para tal interação não poderia ser mais catastrófico. Passamos três meses removendo ossos humanos misturados com reboco, tijolo, restos de alvenaria, conchas, vestígios faunísticos... Histórias para sempre marcadas pelo fogo, pelas cinzas. No entanto, a determinação e resistência da equipe em fazer o necessário, sempre apoiando uns aos outros, me fez sentir que o importante é seguir em frente, sempre.

“não consigo respirar. nada se resolve, e as coisas só pioram. dá pra ver a dor nos olhos, e ainda assim seguimos em frente. cabe tudo num dia, mas não vai embora esse vazio. cada vez mais profundo. cada vez mais silencioso. cada vez mais letal. cada célula do meu corpo se ouriça em revolta. quer mudar de cor, quer sumir, quer explodir. sente em si o sufocar. quer virar outra coisa. quer que o mundo exploda. quer parar de sentir tudo isso. quer aprender a não esconder dor com sorriso. me falta respiro. de novo. outro. mais um. até quando? até quando vamos cair? até quando a mira não vai acertar em mim? medo. desespero. tudo nesse mundo mata, mas parece que sempre quem morre é preto.
será que eu vivo até a próxima página?”

Lara. Outro relato rasgante de escrever. Este, feito logo após o assassinato de George Floyd. A revolta pelas chagas do racismo e a dor da violência colonial que não cessa nem sob uma catástrofe mundial me impulsionou a escrever entupida de fúria. Este foi um relato que passou por uma edição muito cuidadosa, a fim de manter-se a mensagem removendo um pouco da dureza inicial do tom que a escrita urgente produz.

Serviço

"Nuvilíneas", livro de Lara de Paula, 80 páginas

Preço: R$ 50

Como comprar: através da plataforma Evoé, Venda livro Nuvilíneas de Lara de Paula | Evoé 

Para mais informações: https://www.instagram.com/arqueopoesia

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