Talvez os mais jovens ignorem, mas, em 1980, o finado Festival Shell fez o país todo cantar a letra de "Porto Solidão", música defendida por Jessé (1952 -1993) no certame. "Porco Solidão", obra experimental que poderá conferida desta quinta-feira a sábado, pelo Streamyard, claro, bebe desta fonte no título, que, modificado, provoca novas interpretações. "Há anos eu brincava com o nome dessa música, e agora, quando pensamos em fazer essa montagem, veio essa ideia de falar do sentimento de solidão que nos invadiu . Já a palavra 'porco', por remeter a essa condição do ser humano, que se transformou em produto. Estilhaçado, partido em pedaços, tentando o tempo todo se encontrar, voltar a formar um todo. E também do sentido de vísceras, de estar exposto, sendo colocado à prova", pontua Roberson Nunes, um dos criadores junto a Aline Andrade, Jeane Doucas e Marcelo Miyag.
Em cena, há vídeos já gravados, que trazem imagens ora muito fortes, impactantes, ora poéticas. "A pessoa vai construindo seu próprio caleidoscópio com elas". Como a encenação ao vivo será transmitida pelo YouTube, será possível, por meio de um chat, provocar o público, que pode inclusive sugerir caminhos - que serão seguidos ou não pelo elenco. Os personagens são nominados por expressões ou palavras como Sicrana, o 'Homem que não precisa de nada', Jailson Nogueira Pereira Mangueira... "E eles (nomes) aparecem e desaparecem, são como espectros, seres meio míticos. Aparecem em situações cotidianas transformadas em absurdos, e com as quais o público provavelmente vai se identificar. É uma estrutura não linear, fragmentada, parecida com a desorganização que vivemos hoje", adiciona Nunes.
Processo
Roberson lembra que os integrantes da empreitada são de uma mesma geração que, a partir dos anos 90, se juntava para trabalhos presenciais. "A gente gosta de trabalhar junto, mas nosso último encontro, no palco, foi em 2012. Depois, cada um foi para um canto. De qualquer maneira, já estávamos pensando mesmo em fazer um projeto, isso vem de algum tempo. E o distanciamento imposto pela pandemia acabou abrindo a possibilidade de nos encontrarmos no espaço virtual, já que cada um trabalhou em um canto, inclusive em outras cidades, como Viçosa".
Com o avanço da Covid-19 a partir de março, todo mundo em casa, o grupo começou a se encontrar virtualmente, no Zoom, em ocasiões como aniversários. "E em um desses, começamos a pensar em experimentar esta linguagem. Eu e Jeane somos performers e diretores, mas, como desta vez a gente queria atuar, pensamos em chamar alguém para dirigir. E convidamos a Aline Andrade, pois a gente sabia que ela estava desenvolvendo uma pesquisa no (âmbito do) teatro virtual. E quisemos chamar também o Miguel, para trabalhar a questão do vídeo junto", relembra Nunes. Em setembro, então, os trabalhos começaram a ser tocados. "Neste caso, a forma implica muito no tema, pois cada um está em sua casa, tem toda uma questão de comunicação, internet, se acostumar com a tecnologia, escolher qual plataforma utilizar. Aliás, a gente decidiu pela Streamyard porque permite o jogo de imagens sobrepostas, podia gravar coisas ao vivo junto às pré-gravadas", explica.
Escolhas feitas, na etapa seguinte, os integrantes começaram a explorar, com um novo olhar, suas próprias casas. "E começamos a nos mostrar uns para os outros, a mostrar baús, objetos, plantas... Narrar os problemas que você tem em casa, se alguém te vê, o que você vê e o que isso te provoca, e o sentimento... Tudo esse processo também passou muito pela solidão, e nem estou falando só da pandemia, pois a verdade é que estamos todos sós, tem uma solidão que já existia, foi agravada pela pandemia e nos assolou, tomou de suprresa. Na verdade, a gente nem queria associar com a pandemia, mas se descobriu completamente só. Redescobrindo a realidade cotidiana, mas a partir do enclausuramento".
O ator salienta que, mais uma vez aproveitando este momento da história "no qual a gente pode mostrar nosso trabalho em outros espaços", o grupo está legendando os textos que aparecem na montagem, de modo a que o trabalho possa romper fornteiras e ser visto inclusive em outros países. "Temos um narrativa poética, mas também há imagens que são muito fortes, impactantes. Mostram pessoas quebrando a parede, fazendo coisas que de repente não fariam se estivessem mais livres, mas, nessa condição de enclausurados, pensam em quebrar a parede para alcançar o outro lado. Ou botar fogo no apartamento".
E reflete: "Qualquer um que olhe para a sociedade hoje acaba se vendo diante de dilemas como: o que a gente faz? Como escapar? E escapar para ir pra onde? Para o mato? Ou vai negar, fingir que não existe? Então, acho que o espectador cria um história na cabeça dele, é uma forma de recriar a sua realidade". No entanto, além das citadas imagens impactantes, ele diz que também há imagens de livros, de janelas... "A Jeane mora num sítio, então, tem imagens do verde, bem como dos cães, da piscina da casa dela. Já eu, que moro em pleno Centro da capital mineira, em plena avenida Afonso Pena, tenho um quadriculado de uma avenida lotada de carros, ônibus, ambulâncias, motos. Temos também imagens de uma pedreira... Enfim, um leque amplo".
Um feito que os envolvidos apontam foi o fato de, aqui, terem conseguido preservar a máxima que norteia o fazer cênico, que é o espírito coletivo. "O teatro é uma obra coletiva, ao contrário de outras profissionais nas quais você pode trabalhar sozinho - e, por favor, não estou fazendo juízo de valor, apenas apontando uma característica. O teatro é por natureza coletivo, e a gente conseguiu preservar isso. Todos se colocaram virtualmente e no embate, todo dia". Por último, mas não menos importante. Os quatro não refutam a ideia de, quando possível, levar a experiência para o plano presencial. "Pode ser sim, lá na frente, talvez ainda mantendo alguns recursos do virtual, jogando com as duas possibilidades".
“Porco Solidão”:
Data: 25, 26 e 27 de fevereiro - quinta, sexta e sábado
Horário: 20h
Ingressos no site:
https://beta.sympla.com.br/eventos?=Porco+Solid%C3%A3o&tab=eventos
O acesso para as apresentações é gratuito, mas por se tratar de um espetáculo criado de forma independente, existe a possibilidade de contribuir com valores a partir de R$10 para custear a montagem.
Duração: 45 minutos
Classificação: 14 anos
Canal Porcosolidão do YouTube
https://www.youtube.com/channel/UC7dDv8VU0xRXj-NEwIXZzqQ