Em uma primeira audição, mais desatenta, a dicção do intérprete pode confundir o ouvinte. “O nosso amor é Kama Sutra, é juventude/ é demais, parece um nude”, sugere cantar Zeca Pagodinho, 60, unindo, na mesma estrofe, o famoso livro de posições sexuais indiano com a contemporânea febre do envio de fotografias com nudez por aplicativos virtuais. A segunda audição desfaz o engano, auxiliada pelo fato de que “Mais Feliz”, samba que dá nome ao novo disco de Pagodinho, foi lançada há 17 anos na voz de Marquinhos Satã, quando o termo estava longe de atingir o status de celebridade. “É demais, parece um grude” é o que, na verdade, canta Pagodinho.
Composta pelo belo-horizontino Toninho Geraes com Paulinho Rezende, a música foi escolhida para batizar o primeiro trabalho de inéditas de Pagodinho desde “Ser Humano” (2015). “Conheço o Toninho há mais de 30 anos, quando nos encontramos numa festa do Beto Sem Braço aqui no Rio. Fui eu quem coloquei esse apelido nele. Era Toninho das Geraes, aí depois ficou Toninho Geraes. Ele é um cara inspirado, que cria bastante”, elogia.
A opção pela faixa do companheiro de longa data para o batismo do álbum teve um motivo simples. “O título é ‘Zeca Pagodinho Mais Feliz’, não ficou legal?”, devolve. A razão para a felicidade também passa por situações do dia a dia. “O samba, o meu lar, os meus netos”, derrete-se Pagodinho, admitindo que, no papel de avô, a moleza é seu lema. “Com os meus netos eu sou um molenga, igual a todo avô”, conta, isolando qualquer traço de severidade.
Encontros
No passo contrário ao de Pagodinho, circula um vídeo no YouTube em que Maria Bethânia, entrevistada por Leda Nagle, Renata Sorrah e Wally Salomão no programa “Contraponto”, em 1993, afirma que, se realizasse o sonho de ser avó, ela se portaria como “uma velha índia rigorosa”. Bethânia e Pagodinho dividiram o palco no ano passado, quando a turnê “De Santo Amaro a Xerém” rodou o Brasil, num espetáculo de sucesso que o crítico musical Jamari França definiu, pejorativamente, de “encontro de siri com Toddy”, acentuando as diferenças entre eles.
“A Bethânia é muito responsável, aprendi muita coisa boa com ela, foi uma alegria”, destaca o músico carioca, ao falar sobre a experiência. Na ocasião, a baiana o convenceu a dar uma pausa no samba e na gafieira para interpretar as seresteiras “Chão de Estrelas”, “E Daí?” e “Naquela Mesa”. Agora, Pagodinho decidiu se arriscar nos caminhos flamencos da versão para “Apelo”, samba-canção de Vinicius de Moraes e Baden Powell que fecha o disco, já gravado pela própria Bethânia, Elizeth Cardoso e Maria Creuza, “só gente fina”, como ele mesmo recorda.
O registro do sambista trouxe as participações de dois virtuoses: o bandolinista Hamilton de Holanda e Yamandu Costa, que comparece com seu violão de sete cordas. “Eu queria fazer alguma coisa com os dois, e aí eles escolheram essa música, que é linda. A ideia do arranjo foi toda do Rildo Hora”, enaltece Pagodinho, concedendo os méritos ao maestro responsável pela produção do disco.
Outro nome que o cantor faz questão de lembrar é o de Arlindo Cruz. A música que o alçou ao estrelato, “Camarão que Dorme a Onda Leva”, de 1983, é uma parceria com Arlindo e Beto Sem Braço. Pela primeira vez desde que estreou no mercado fonográfico, Pagodinho teve de lidar com a ausência de Arlindo no estúdio. Apesar disso, decidiu homenagear o amigo com uma dedicatória escrita a mão, que aparece no encarte do álbum.
A relação de irmandade é reiterada em “Nuvens Brancas de Paz”, delicada composição feita por Pagodinho com Arlindo e Marcelinho Moreira antes de o parceiro sofrer, em março de 2017, um acidente vascular cerebral do qual ainda se recupera. “Um dia cheguei à casa do Arlindo cantando uns versos, e acabamos fazendo essa música, eu nem me lembrava mais”, admite.
Sem apresentar canções autorais desde 2005, Pagodinho pôs fim a essa espera em dose dupla. “Enquanto Deus Me Proteja” é outra novidade, composta com Moacyr Luz. “Para mim está sendo bom voltar a escrever, eu comecei como compositor. Mas acaba que é muita coisa pra fazer, shows, viagens, e, quando chego em casa, quero descansar”, observa ele, que confessa outro fator para o desânimo. “Muitos amigos morreram, e aí eu fiquei meio assim, pra baixo”, constata.
Em abril, o músico sofreu a perda de Beth Carvalho. Questionando sobre a principal contribuição da madrinha para a música brasileira, ele esquece a modéstia. “Botar o Zeca Pagodinho no mundo”, responde. No início do mês foi a vez de ele se despedir de Elton Medeiros, de quem regravou “O Sol Nascerá”, parceria com Cartola. “Tive pouca convivência com o Elton, nunca fui de tietar”, revela.
Crítica
Aos 60 anos, completados em fevereiro, Zeca Pagodinho promete “levar a vida enquanto Deus permitir”, mas confessa que ele próprio sente medo da morte. “Todo mundo tem!”, exclama. Na última quarta, o artista recebeu a notícia da morte de Severino Batista, morador de rua conhecido como Cobra Coral, com quem ele passou a ter amizade e que começou a ajudar financeiramente depois que eles se conheceram em um quiosque, no Rio.
O cenário de abandono e violência do Estado é o tema de “Na Cara da Sociedade”, crítica política e social em forma de samba, criada por Serginho Meriti e Claudemir. A letra dispara: “É o rico, é o pobre, é o mesmo perigo/ É a bala perdida, é a guerra, é o caos/ É a ignorância dos votos nos bons homens maus/ Sou carioca, mas sei que meu Rio não anda legal”, canta Zeca.
“Acho que para o Brasil voltar a ter paz tem que parar de roubar e botar as crianças na escola”, opina. Saudoso de um tempo em que “existia mais rádio pra tocar”, ele assegura que “tem uma garotada bacana fazendo samba”, de que são exemplos Tereza Cristina e Xande de Pilares, que o acompanham no disco.
Disco
“Mais Feliz”, o 24º álbum solo da carreira de Zeca Pagodinho traz 14 faixas inéditas na voz do cantor, entre elas “O Carro do Ovo”, “Quem Casa Quer Casa” e “Dependente do Amor”
Ouça faixa do novo álbum de Zeca Pagodinho: