"O trabalho não me cansa, é uma diversão. Converso com um, com outro, vou ao banco, passo pano na loja. Tem serviço o dia inteiro”. “Não sei quando vou parar de trabalhar. Se ficar em casa, não tem jeito”. “Enquanto eu tiver as forças necessárias, vou trabalhar, mas isso não impede que eu desfrute um pouco ou talvez até muito daquilo que o comércio me proporcionou”.

É assim que alguns comerciantes de Belo Horizonte que estão há décadas no balcão de suas próprias lojas falam do trabalho. São pessoas de 70, 80 anos que dedicaram a vida ao comércio da capital, uma cidade íntima dos lojistas desde que ela foi fundada, e que continua a depender diretamente do setor. Do total da arrecadação tributária da metrópole, 54% — mais de R$ 2,8 bilhões — vêm dos lojistas, por meio do pagamento do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) conforme dados da prefeitura.

“Na construção da cidade, já havia um pequeno comércio, e foi necessário ter lojas maiores de material de construção para as casas. Comércio puxa comércio”, introduz o escritor Osias Ribeiro Neves, autor do livro “BH 125 Anos – um olhar sobre a cidade, seu comércio e sua história”.

A vocação da cidade para o comércio e os serviços transcorreu inevitavelmente. “As indústrias que existiam eram pequenas, como tecelagem perto da praça da Estação e algumas metalúrgicas. Mas o comércio vai crescendo paralelamente a isso. A cidade não tinha como se expandir industrialmente, porque é muito pequena”, prossegue Neves.

Aos 127 anos, BH mantém um vínculo intrínseco com o comércio. Laço este configurado a partir de histórias como as de Agmar Alves, Valci Carvalho, David Cardoso e Nilse Helena Batella, que há décadas comandam algumas das mais de 67 mil empresas do setor na capital. Dados do governo federal revelam que o varejo em BH emprega sete a cada dez trabalhadores da cidade. As cadeias mais pujantes são as de vestuários e acessórios, cosméticos, perfumaria e cuidados pessoais, segundo o Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.

“Não se fala em Belo Horizonte sem o comércio. O setor formou muitas pessoas, gerou renda e fez com que a cidade se tornasse essa potência”, ilustra o presidente da Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL-BH), Marcelo de Souza e Silva.

Comércio e serviços são área que mais emprega em BH. (Flávio Tavares/O TEMPO)

 

Dada a relevância, o comércio está inscrito até no nome de regiões da cidade. A Savassi, por exemplo, ganhou o nome devido a uma padaria inaugurada em 1940 por uma família de origem italiana. Venda Nova passou a ser conhecida assim em referência a um estabelecimento na região.

O museólogo e analista institucional do Ponto Cultural CDL, Allysson Gudu, sublinha que a ligação de BH com o comércio é também cultural. “O nosso povo gosta dessa cultura de balcão, de frequentar os ambientes. Os estabelecimentos comerciais não são só pontos de compra e venda, mas pontos de encontro”, diz. 

Com um setor robusto, pensar políticas públicas torna-se um desafio, pontua o secretário municipal de Desenvolvimento Econômico, Adriano Faria. “O comércio é tão representativo na economia da cidade que todas as nossas ações, independentemente se são específicas para o comércio ou se são uma ação macro, impactam-no significativamente”.

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Um olhar para o futuro do comércio de BH

Com o passado estabelecido, o comércio mira o futuro em BH. A revisão do Plano Diretor, documento que norteia o desenvolvimento e ordenamento da capital, deverá tratar sobre isso, segundo o secretário Adriano Faria. O foco será promover o adensamento populacional não só no hipercentro, mas também em bairros tradicionais como Santa Tereza, Lagoinha, Bonfim e Floresta. Para isso, o Executivo buscará um consenso para manter características de casarões e prédios históricos e promover o uso residencial. “Tem vários bairros próximos ao centro em que as pessoas poderiam ir ao trabalho até caminhando. Ninguém está falando para derrubar um casarão histórico. Precisamos encontrar formas equilibradas e criativas para promover a convivência nestes locais”,

Com tesoura na mão, Valci fez do Barreiro seu país

(Flávio Tavares/O TEMPO)

 

Valci Carvalho, 80, conhece bem a cultura das barbearias. “O salão é gozador demais”, resume. Por isso, nos anos 70, quando ele se mudou de Carandaí, na região Central de Minas, para trabalhar na barbearia do irmão no Barreiro, andou o máximo possível por BH para conhecer bem a cidade e evitar se tornar alvo de piada dos colegas. “Foi difícil, porque vim do interior e não estava acostumado a nada. Se desse uma má nota, o pessoal do salão encheria o saco. Aprendi a andar sozinho no centro para só depois sair com o pessoal”.

Com o tempo, sua relação com BH — e especialmente com o Barreiro — tornou-se próxima, e hoje ele é dono de sua própria barbearia. “Eu montei o salão e não foi mole Tinha um lote em Ibirité, vendi e comprei duas cadeiras. Tenho clientes que vêm desde que comecei, há uns 40 e tantos anos. Muitos morreram, mas alguns estão aí ainda. Alguns não aguentam mais sair, então vou na casa deles”, conta.

O par de cadeiras está até hoje no salão, um espaço simples que pulou de ponto em ponto no Barreiro ao longo das décadas. “Meu maior prazer é cortar cabelo e bater papo. No salão, você sabe quem morreu, quem está doente, tem cara que já contou a primeira vez que teve relação... No salão, você sabe da vida de todo mundo”.

O filho de Valci, Wilham, começou a trabalhar com o pai aos 15 anos e, aos 52, fala do pai e do negócio com admiração. “O salão é a vida dele. Ele nunca tentou mudar de profissão. Criou a família toda, comprou sua casa e seu carro com o salão”.

Essa relação entre gerações é crucial para manter a tradição — e a longevidade — dos negócios, cita o presidente da CDL-BH, Marcelo de Souza e Silva. “Quem constitui a empresa precisa saber que o negócio necessita avançar e, para isso, se adaptar às mudanças e também aceitar o palpite dos filhos, netos, que acabam chegando. E com isso, as gerações vão se completando e conversando entre si”.

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No Mercado Novo, Dona Nilse também se tornou Dona Jurema

(Alex de Jesus/O TEMPO)

 

No início da tarde, quando os restaurantes do Mercado Novo estão fervilhando de fregueses nos balcões dos restaurantes do segundo andar, Dona Nilse aguarda a chegada dos clientes em meio a milhares de velas coloridas. “Este prédio agora virou o céu para mim. Tanto eu trabalho quanto me divirto”, diz ela.

No jaleco azul-marinho que ela veste sobre as roupas, está estampado o nome da loja que fundou nos anos 70 e na qual atende todos os dias até hoje, aos 86 anos: Fábrica de Velas Jurema. Ele é referência ao comércio de um antigo e fiel cliente, mas também calhou de lembrar a Cabocla Jurema, entidade espiritual do candomblé e da umbanda que protege as matas. Não é raro que um cliente chame Nilse de Dona Jurema — e ela atende.

O trabalho, e não só o empreendedorismo, é a espinha dorsal de sua vida. “Eu comecei a trabalhar em 1957”, introduz e, em seguida, desfia a lista de lojas onde foi funcionária. Até que, em 1973, abriu a fábrica de velas, inicialmente com o irmão, que depois deixou o negócio.

A Jurema ocupa o espaço de seis lojas no Mercado Novo, além da sala para fabricação das velas no terceiro andar. Nilse recorda que, quando se instalou no mercado, precisou também de uma sala para deixar o berço dos filhos. “Quantas vezes eu estava dando de mamar aos meus filhos e tirando nota fiscal para o cliente? Aqui é uma história, uma vida”. 

Entre as idas e vindas do Mercado Novo — hoje efervescente, mas, por anos, em parte esvaziado —, Nilse permaneceu em seus corredores. Para ela, que trabalha com o filho, negócios significam família. “Nascemos para trabalhar. Família Batella e família Ladeira são trabalhadoras”, orgulha-se, lembrando-se do pai e da mãe.

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Criado no interior, David fez império em BH

(Alex de Jesus/O TEMPO)

 

Aos 75 anos, David Cardoso carrega com ele a história de uma das maiores redes de óticas de BH. Mas, muito antes disso, passou a juventude em um tipo bem diferente de comércio. “Trabalhava no armazém do meu pai de 7h às 22h. No sábado, levantava às 4h para matar porco. Quando eu vim para BH, me arrumaram um avental branco, uma gravata verde e me disseram que só trabalhava até às 12h nos sábados. Pensei ‘Nossa, posso descansar no sábado?’”.

Sua trajetória na capital começou com a falência do armazém do pai, em Bom Despacho, no Centro-Oeste de Minas. Toda a família mudou-se para BH, onde a mãe abriu uma pensão. David conheceu a caixa de uma ótica, que o indicou para o patrão como vendedor.

Nunca mais saiu do ramo. “Descobri que o pessoal era de chegar tarde e sair cedo. Eu chegava cedo e começava a atender primeiro. Em três meses, já estava vendendo mais do que os outros por persistência, porque precisava vender. Eu era o mais velho da família”, rememora.

O esforço foi frutífero, e o vendedor se tornou gerente comercial da rede de óticas, onde trabalhou por 17 anos. Então, a verve empreendedora falou mais alto e ele decidiu largar tudo para se arriscar em uma ótica própria no fim dos anos 80. “O respeito aos funcionários e fornecedores era tudo o que eu tinha”.
Sua nova rede, a Centro Visão, cresceu até se tornar uma das dez maiores do Brasil. Hoje, David passou o comando para os filhos, mas continua a ir à primeira de suas lojas, no centro de BH. 

Orgulhoso de ainda ser um bom vendedor, compartilha uma lição de família. “Quando fui promovido na ótica em que trabalhava, minha mãe disse: ‘Cerque-se de pessoas boas, honestas e que tenham consideração por você para não ter decepções na sua vida’. Assim eu fiz”.

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De 10 m² a 400 m², Agmar conquistou Venda Nova

(Flávio Tavares/O TEMPO)

 

Aos 70 anos, Agmar Alves de Sousa analisa sua vida em retrospecto e se reconhece como um empreendedor desde a infância. “Chegando em Belo Horizonte com 9 anos, fui engraxate no bairro Aparecida. Já era um empreendedor. Lá em casa, nascia chuchu, então eu os pegava, colocava em um balaio e deixava perto da caixa de engraxate para vender”, lembra. Essa veia se intensificou anos depois, quando, inspirado pela mãe, costureira, ele abriu um armarinho.

A vontade de ter um negócio não o abandonou ao longo da vida, mesmo quando ele trabalhava de carteira assinada e progredia na carreira. Até que, em 1979, Agmar abriu sua própria loja de tecidos em Venda Nova. “Minha primeira loja, o armarinho, tinha 2,5 m por 4 m de fundo. Hoje, minha loja tem 400 m²”, comemora.

Ele fala sobre Venda Nova com carinho. “Ela tem vida própria. Brincamos aqui que ela é a capital de Minas, porque conta até com o centro administrativo do governo. Não enxergamos nossos colegas comerciantes como concorrentes em Venda Nova. Somamos na geração de emprego e renda”.

Agora, Agmar planeja sua sucessão. “Minha esposa faz a parte financeira, e minha filha Fernanda é a sucessora, porque ela praticamente cresceu na loja e tem espírito empreendedor. Acredito que possua todas as qualidade para dar prosseguimento a um sonho de 46 anos”, conclui o comerciante. 

Mesmo com a visão no futuro, o foco de Agmar é o presente. “Vou fazer 71 anos, mas tenho a disposição de 30 anos de idade. Ainda recebo meus clientes. Sou uma pessoa saudável e tranquila no que me propus e sinto orgulho de ainda ter uma empresa enxuta e sadia”.