“Se a benção vem a mim, reparto… Tudo o que nós têm é nós”. Os versos de Emicida em "Principia" falam de afeto e amor, mas também do senso de comunidade, ou melhor, de ubuntu, a filosofia africana que diz que "eu sou, porque somos". Negros são a maioria dos empreendedores de Minas e donos da maioria dos pequenos negócios no país, mas eles ganham em média 32% menos que os brancos. No caso das mulheres negras a diferença é ainda maior (veja abaixo).
Os dados, divulgados neste ano pelo Sebrae, escancaram a realidade de um país desigual. No combate do racismo estrutural, que provoca tanta dor e impõe barreiras à esta parcela da população, vem ganhando força no Brasil o movimento black money (dinheiro negro, em inglês), que propõe a compra em negócios liderados por pessoas negras.
No início do mês, no dia 2, foi inaugurada no bairro Lagoinha, na região Noroeste de BH, a Aquilombar, casa de cultura e eventos que na sua origem já se propõe a ser um “rolé” feito por pessoas negras para pessoas negras. À frente da casa está a influenciadora social Fatini Forbeck, de 32 anos, em sociedade com a publicitária e produtora Nathalia Trajano.
Forbeck começou na produção cultural ainda com 15 anos, mas seu trabalho ganhou notoriedade com o Samba das Pretas, com protagonismo feminino, que ajudou a idealizar em 2019, e de onde despontou a sambista de sucesso Adriana Araújo.
“A Aquilombar nasce da necessidade da minha produtora ter um espaço para receber eventos grandes. Hoje um aluguel gira em torno de R$ 12 mil a R$ 20 mil. Como você consegue lucrar assim?”, pondera a empreendedora. O empreendimento dela ocupa hoje um espaço de 750 m² e tem capacidade para 750 pessoas, mas na inauguração cerca de 1.500 pessoas passaram pela casa.
Forbeck é uma das mais de 500 mil empreendedoras negras de Minas que defendem o movimento black money para a autonomia e emancipação financeira da comunidade. “Se a sociedade não nos reconhecer para corpos que fazem outras coisas para além de estar atrás de um balcão, vamos fazer que aconteça entre nós. Compro dos meus, vendo para todos. A Aquilombar não segrega, mas deixa negritado que o protagonismo das pessoas pretas é primordial. O que fazem no discurso, para nós é vivência”, defende Forbeck.
Na casa, há 60 pessoas empregadas, sendo a equipe majoritariamente negra e feminina. O espaço não é ocupado por eles somente em atendimento, recepção e bar. As empreendedoras têm o cuidado de chamar artistas negros para a apresentação e comprar de fornecedores pretos. Ritmos que vêm da periferia, como samba, funk, pagodão e black music são celebrados na Aquilombar em festas residentes.
Além disso, a casa vai desenvolver por mês dois eventos gratuitos para garantir a acessibilidade da vizinhança e uma feira que reunirá produtores e empreendedores locais. Bate-papos e oficinas abertos ao público também já começaram a ser realizados. “Essas formações que fazemos são gratuitas e abertas pra comunidade pra falar de outras pautas além das culturais. Trouxemos a economista Gabriela Chaves, que tem um trampo forte de ensinar educação financeira através de letra de rap. Vai ter oficinas de técnicas de som, luz, audiovisual, conteúdo audiovisual mobile. Aquilombar é um verbo, convida as pessoas para se unir e fortalecer”, explica Forbeck.
Segundo a empreendedora, para além de suprir um déficit de capacitação da comunidade negra, essas oficinas dão opções de remuneração ao apresentar outros ofícios e formas de gerar renda. “A gente não tem preguiça de trabalhar, faz o que precisa ser feito para se manter e se manter bem. Não é só grana para gente. É para ajudar pai, mãe, irmão…”, diz Forbeck.
A casa só tem três semanas, mas a empreendedora já tem a intenção de ampliar o espaço e se tornar referência em BH. “E pagar o investimento que é o mais importante”, brinca Forbeck, que levou anos para levantar o montante, que preferiu não informar à reportagem de O Tempo.
Raio-X do empreendedorismo no Brasil:
Donos de negócios
- Negros: 15,6 milhões (52%)
- Brancos: 13,9 milhões (46%)
- Outros: 400 mil (1,33%)
Média de ganhos
- Homem branco: R$ 3.231
- Mulher branca: R$ 2.706
- Homem negro: R$ 2.188
- Mulher negra: R$ 1.852
Fonte: Dados divulgados em fevereiro pelo Sebrae a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) do IBGE, relativa ao segundo trimestre de 2022. Informações: datasebrae.com.br
Feira Mercado Negro no Teatro Espanca. Foto: João Pedro Duarte/Divulgação
Há cinco anos, feira Mercado negro potencializa negócios afro
Em 2018, nasceu no Teatro Espanca, na região conhecida como baixo centro de BH, a feira Mercado Negro, que reúne mensalmente empreendedores pretos de diversas áreas: de cosméticos, roupas e acessórios até à gastronomia e artes visuais. “Nasceu muito do desejo de encontro da Kelma Zenaide, especializada em gastronomia afro-brasileira, que conversou sobre a possibilidade de um mercado só para negros”, conta Suellen Sampaio, coordenadora do espaço cultural ao lado de Alexandre de Sena.
Cerca de 50 edições já foram realizadas, sendo a última em 10 de novembro, com uma média de público de 200 a 300 pessoas. O grupo de empreendedores conta com 50 pessoas e a cada feira, entre 16 e 18 marcas expõe, chegando ao número de 25, no máximo. No começo, o próprio grupo contribuía com pequenas quantias para a manutenção do espaço, mas hoje o projeto foi contemplado em leis de incentivo à cultura.
A coordenadora do Espanca não consegue estimar quanto a feira movimenta em valores, porque há dias bons e outros nem tanto... Mas a partir da feira, muitos empreendedores fazem vendas online, networking, dão entrevistas, participam de eventos grandes, como o Festival de Arte Negra (FAN) e até se sentem seguros para abrir o próprio ponto físico, como a Kelma Zenaide, que vai inaugurar nos próximos dias seu restaurante. “O maior potencial é nosso afeto, encontro e cuidado. A gente se identifica; não puxa o tapete, o estende para voar junto”, afirma Sampaio.
Além dos expositores, em sua maioria mulheres, a feira conta com uma atração musical e uma palestra formativa com temas sugeridos pelos próprios empreendedores, como marketing, expansão de negócios e gestão financeira. Pós-feira, o público acaba se dirigindo ao 2BlackBeer, cervejaria na região liderada também por um homem negro.
“Há um déficit geral quando se fala sobre feiras. Não costuma-se encontrar muitas pessoas pretas. O black money, mais que importante, é uma necessidade de ter a circulação desse dinheiro entre pessoas pretas, de se investir nos próprios negócios”, explica Sampaio.
A próxima edição do Mercado Negro, no Teatro Espanca (Rua Aarão Reis, 542, Centro, BH), está marcada para o dia 8 de dezembro, às 17h.
Saiba como praticar e fortalecer o black money
“Não empreendi por dom, foi porque eu precisava de dinheiro”. A frase é de Kelly Baptista, de 39 anos, que tinha acabado de pedir demissão de uma organização social, quando veio a pandemia e acabou empreendendo como consultora e palestrante.
Trabalhando há 22 anos no terceiro setor, ela hoje é diretora da Fundação 1bi e em outubro entrou para a LinkedIn Top Voices Empreendedorismo. A entidade ajuda pequenas organizações sociais, muitas vezes grupos periféricos sem nenhuma formalização, a pensar em seus negócios por meio da formação em tecnologia. “Hoje, 80% do nosso público são mulheres que fizeram do espaço de casa uma ONG, que vendem alguma forma de artesanato ou captam recursos fazendo bazares”, detalha.
Segundo Baptista, é importante deixar claro que a maioria da população negra empreende por necessidade. “Vende de manhã para jantar. Não podemos romantizar isso. Mas se começou a empreender e tomou gosto, que se profissionalize”, destaca.
Recentemente, viralizou no LinkedIn um artigo de Kelly com dicas para praticar o black money no dia a dia. O primeiro ponto, para ela, é se educar sobre a importância de ser apoio em sua comunidade. “Procure consumidor de empreendedores negros. Se tem rede social, somos todos influencers, promova quem fez seu cabelo, sua maquiagem...”, detalha.
Para que a economia gire, ela também costuma indicar outras palestrantes negros nos eventos que faz e sempre pergunta sobre quem são fornecedores e equipe de quem está por trás da iniciativa. “Tem espaço para todo mundo. Precisamos nos formar e se fortalecer”, diz.