O direito a uma renda digna é garantido por lei. Está escrito na Constituição, no artigo 7º, que o salário mínimo precisa ser capaz de atender as necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e Previdência Social. No entanto, no dia a dia, as coisas são bem diferentes, e, para dar conta de pagar isso tudo, esse benefício tinha que ser praticamente cinco vezes maior do que é hoje.
Com o último reajuste, o salário mínimo passou de R$ 1.100 para R$ 1.212. Com essa quantia, o trabalhador de Belo Horizonte consegue comprar duas cestas básicas, avaliadas em R$ 605,16. Mas, pelos cálculos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o ideal para bancar todas as despesas constitucionalmente previstas seria de R$ 5.800,98.
A questão é que nem 10% dos trabalhadores brasileiros têm uma renda dessas. Segundo os últimos dados disponíveis da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), coletados em 2020, 90% dos trabalhadores brasileiros ganham até no máximo R$ 4.900. Até R$ 7.092 por mês, que é a próxima faixa de renda medida pelo estudo, são 95%.
O supervisor técnico do Dieese-MG, Fernando Duarte, explica que a estimativa do salário ideal considera as necessidades básicas de uma família com dois adultos e duas crianças. “Quando a gente apresenta esse valor de R$ 5.800 como o salário ideal, muita gente fala que isso quebraria o país. Mas o objetivo não é subir de uma vez, para levantar o debate público para criação de políticas de longo prazo com um salário que consiga suprir todas as necessidades básicas”, explica Duarte.
Nos últimos cinco anos, a distância entre o salário real do ideal tem ficado cada vez maior. Em 2017, a diferença era de 3,8 vezes. Agora, considerando a última estimativa de dezembro, está em 5,2 vezes. Segundo Duarte, isso acontece principalmente pelos alimentos e, com a inflação na casa dos 10%, falta dinheiro para fazer as mesmas coisas que antes. “Nós consideramos que a alimentação representa, em média, 35% dos gastos totais da família. Acontece que, se outras despesas sobem muito, como foi o caso da gasolina e energia, a pessoa acaba tendo que abrir mão do consumo de alimentos”, ressalta.
Na casa de Daniele Conceição Faria, 46, na matemática para não deixar faltar o básico para a família, cada centavo faz diferença. “Eu vou atrás de desconto mesmo. Eu ando 40 minutos para comprar pão porque descobri uma padaria que vende pão adormecido mais barato”, conta. Bem humorada e muito consciente da situação do país, ela conta viver no limite financeiro. Mas faz piada e gargalha da própria condição. “Carne a gente não lembra nem o gosto, olho para ela no supermercado e falo ‘nunca te quis’. Tem época que é um aperto: a geladeira dá eco de tão vazia, e as latas viram batuque na mão dos meninos”, diz.
A família mora em uma casa cedida pelo sogro de Daniele, o que já traz um grande alívio por não terem que pagar aluguel. Só que, nos últimos tempos, com a inflação em alta, a família tem sentido o baque. “Meu marido recebe um vale-alimentação que antes dava para comprar o grosso da alimentação. Aí chegou um ponto que arroz passou a custar R$ 25, como a gente chegou a ver, feijão a R$ 10. Pensa em uma família com quatro pessoas. Um pacote de feijão dura uma semana, e aí já vão R$ 40. Em fevereiro, março do ano passado, a gente já precisou inteirar R$ 50 no vale para comprar o básico. Agora, já são R$ 120”, calcula.
Brasileiros gastam metade da renda com energia e gás
Para 46% dos brasileiros, só os custos com gás e energia elétrica consomem metade ou mais do salário do mês, segundo pesquisa feita pela Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec) a pedido do Instituto Clima e Sociedade. Os outros 50% têm que ser suficientes para arcar com todo o resto: comida, moradia, roupa, transporte, educação, saúde e o que mais vier.
A pesquisa mostra ainda que a principal estratégia usada pelos brasileiros de baixa renda para conseguir pagar a conta de luz é a redução na compra de roupas, sapatos e eletrodomésticos. Pelo menos foi a resposta dada por 40% dos entrevistados pelo instituto de pesquisa. Para 22% dos ouvidos, a medida adotada é mais drástica: eles diminuem o consumo ou deixam de comprar alimentos básicos, como arroz, feijão, café e açúcar.
“Os resultados da pesquisa foram surpreendentes para a gente porque nosso intuito era capturar como as pessoas estavam percebendo a crise hídrica e como os aumentos da energia refletiam no orçamento delas. Mas descobrimos que 90% das famílias têm sido impactadas pelo atual valor da conta de luz”, afirma a coordenadora do projeto Iniciativa Amazônia Legal Urbana do Instituto Clima e Sociedade e responsável pela pesquisa, Amanda Ohara.
O aumento do gás de cozinha forçou uma substituição por fontes alternativas. A lenha se tornou uma opção para 10% dos brasileiros, sendo em sua maioria pessoas das classes D e E, com renda familiar de até um salário mínimo e grau de escolaridade até o ensino fundamental. O carvão passou a ser adotado por 6% das pessoas, segundo o Ipec. “Isso é muito sério porque, em números absolutos, temos mais de 33 milhões de pessoas que passaram a usar fontes que liberam materiais poluentes e causam problemas respiratórios. É uma questão de saúde pública porque causa um agravamento dessas doenças e até mortes prematuras. É um retrocesso, porque o gás não é acessado por falta de dinheiro da população”, explica Amanda.