Algumas das tantas urgências comunicadas pela série de fotografias de povos yanomamis feita por Claudia Andujar, nos anos de 1970, foram tragicamente atualizadas e explicitadas após janeiro de 2023, quando o mundo foi confrontado com imagens de indígenas abandonados, sofrendo com a desnutrição e o adoecimento, enquanto tinham suas terras saqueadas pelo garimpo ilegal. Um cenário que, cerca de meio século antes, já era denunciado pela fotógrafa suíça radicada no Brasil.
Andujar começou a fotografar os yanomamis em 1971, a convite da revista “Realidade”, que preparava uma edição especial sobre a Amazônia. Quando chegou, encontrou uma população relativamente isolada, saudável e vigorosa – como surgem nos registros feitos nesses primeiros anos, seja em meio ao cotidiano nas aldeias e florestas ou durante seus potentes rituais xamânicos. Com o passar dos anos, no entanto, a fotógrafa, uma sobrevivente do Holocausto judeu, testemunhou a devastação provocada pela chegada dos brancos ao território, para onde grileiros e garimpeiros – incentivados pela visão desenvolvimentista do governo militar para a região – levaram doenças, poluição e violência.
As mudanças na paisagem da floresta e no corpo dos indígenas, ela registrou ao longo de quase uma década em uma série de fotos que, desde 2015, ocupa um pavilhão do Instituto Inhotim: trata-se da Galeria Claudia Andujar, que, dez anos após sua inauguração, é reformulada, potencializando, atualizando e emprestando mais complexidade às temáticas ali discutidas. Com a nova proposta, o espaço é reinaugurado neste sábado (26 de abril), quando passa a agregar ao seu nome o termo Maxita Yano – “casa de terra” na língua Yanomami –, e recebe os trabalhos de 22 artistas indígenas da América do Sul, que vão seguir em exposição por tempo indeterminado no local.
A ideia, explica a curadora Beatriz Lemos, é incluir novos diálogos entre Andujar e artistas indígenas contemporâneos, atualizando contextos, aprofundando reflexões relacionadas às existências indígenas no Brasil e no mundo, trazendo uma visão expandida sobre natureza, território, cotidiano, espiritualidade, retrato e alianças, além de refletir sobre o contexto atual da presença indígena na arte contemporânea – muito diferente daquele de 10 anos atrás, quando a galeria foi aberta. Naquela época, lembra Júlia Rebouças, diretora artística do Inhotim, essa presença era reduzida, em espaços institucionais, à discussão sobre a aquisição de artefatos históricos desses povos, sem abrir espaço para a arte contemporânea indígena em si.
No novo formato, o pavilhão passa a exibir 30 imagens inéditas de Andujar, que estavam na reserva técnica do museu, enquanto outras 90 obras desses 22 artistas, entre fotografias, desenhos e trabalhos audiovisuais centrados na autonomia e autorrepresentação desses povos, são adicionadas ao espaço. No total, considerando também itens que já estavam na galeria, são quase 300 em exposição.
Integram a mostra obras de Denilson Baniwa (AM), Paulo Desana (AM), Edgar Kanaykõ Xakriabá (MG), UÝRA (AM), Tayná Uráz (RJ), Graciela Guarani (MS), Alexandre Pankararu (PE), Renata Tupinambá (RJ), Tiniá Pankararu Guarani (PE) e Hutukara Associação Yanomami (RR), além dos nomes internacionais Elvira Espejo Ayca (Bolívia), Julieth Morales (Colômbia), Olinda Silvano (Peru), David Díaz González (Peru) e Lanto’oy’ Unruh (Paraguai).
Percurso
Na primeira sala do prédio projetado para receber as obras de Claudia Andujar, as paisagens aéreas da série Rio Negro (1970-1971), da artista suíça, que mostram a vastidão da floresta amazônica, encontram ressonância nos autorretratos da artista UÝRA, que parece evocar a ideia de um “devir-floresta” em performances fotográficas onde integra seu próprio corpo à vegetação nativa. Um trabalho que ainda evoca a noção, também explícita no trabalho de Andujar exposto no decorrer da galeria, de que há uma simbiose entre os povos indígenas e seus territórios, de maneira que, na natureza sã, preservada, o corpo indígena aparece igualmente são.
Na segunda sala, as imagens feitas pela fotógrafa na região do rio Catrimani, onde ela conviveu por anos com os Yanomami, são exibidas ao lado das obras da boliviana Elvira Espejo Ayca. A ideia, explica a curadora Beatriz Lemos, é propor uma reflexão sobre como a arte por vezes ultrapassa a fronteira estética mais distanciada, se constituindo a partir da construção de uma certa familiaridade, levando à produção de registros marcados pela intimidade com os retratados.
O sentimento de familiaridade presente nesses trabalhos, aliás, pautou o discurso do pensador Davi Kopenawa, que falou com os artistas, os funcionários do museu e a imprensa em um evento de apresentação do novo conceito da galeria, na sexta-feira (25). Falando inicialmente em seu idioma nativo, o líder yanomami exaltou os parentes presentes, defendeu a arte como instrumento de luta e lembrou com carinho do tempo que conviveu com Andujar, que, aos 93 anos, também participou do encontro.
Já na ampla sala central, o tema da espiritualidade, do cotidiano e da resistência é destacado, mas não como elementos dissociados: nela, é notável como os rituais, para além de ocupar papel em cerimônias, são parte do dia a dia, como no processo coletivo de preparo de alimentos. Aqui, as fotografias de Andujar que retratam rituais yanomami são colocadas em diálogo com as obras de Graciela Guarani, Tayná Uráz, Julieth Morales e Lanto’oy’ Unruh.
Graciela Guarani, por exemplo, apresenta Xe Ñeè (2025), um trabalho audiovisual que documenta o cotidiano de sua comunidade Guarani Kaiowá, uma das que enfrentam situação de maior vulnerabilidade hoje, extraindo beleza em meio à adversidade de uma vida à beira das estradas. As imagens foram feitas quando ela, após mais de uma década, retorna à sua aldeia de origem.
Em vídeo, o trabalho de Julieth Morales, por sua vez, contrasta, mas, ao mesmo tempo, encontra paralelos com as imagens congeladas das fotografias: com imagens em preto e branco, ela representa um rito de passagem do povo Misak, da Colômbia, em que meninas, após a menarca, passam tecer uma bolsa, enquanto, no painel em frente, estão registros de Andujar do Reahu, uma das mais viscerais tradições yanomamis, que também dialoga com um rito de passagem, no caso, um rito fúnebre. Nos dois casos, há o fato de esses processos de ritualização reforçar laços, alianças e sua identidade étnica.
Já Edgar Kanaykõ Xakriabá exibe Wahirê: Canto e dança tradicional do povo Xakriabá (2018), uma série fotográfica que celebra a cultura de seu povo, que vive no território mineiro, reforçando a arte como instrumento de luta. Como sintetiza a assistente curatorial Varusa, ele faz da câmera um arco e, da imagem, a flecha.
Obras comissionadas e trabalhos audiovisuais
O percurso proposto pela equipe curatorial para a Galeria Claudia Andujar | Maxita Yano culmina em um núcleo dedicado aos impactos brutais da invasão não indígena, onde fotografias históricas de Andujar sobre a construção da Perimetral Norte, durante a ditadura militar, e o avanço do garimpo ilegal no fim dos anos 70 se conectam com a obra comissionada do Denilson Baniwa, deste ano. Ele apresenta, neste trabalho, uma cartografia da presença yanomami em Boa Vista, Roraima, que expõe a vulnerabilidade urbana desse povo ao acompanhar o dia a dia em deslocamento do estudante universitário e professor Alfredo Himotono, que alterna a cidade com a Terra Indígena Yanomami.
Há outros trabalhos especialmente criados para a ocasião, como Os Espíritos da Floresta (2025), de Paulo Desana, que reinventa pinturas corporais tradicionais com luz negra. Neste trabalho, o artista retratou representantes das aldeias Arapowã Kakya, do povo Xukuru Kariri, e Naô Xohã, dos povos Pataxó e Pataxó Hãhãhãe, que vivem atualmente na região de Brumadinho. As fotos foram feitas em sessões noturnas nas matas do próprio Inhotim, onde o grupo retratado participou de uma residência artística, revisitando grafismos que constituem sua própria identidade. Por fim, há o painel vibrante de Olinda Silvano, que traz o kené, tipo de desenho em padrões geométricos do povo Shipibo-Konibo, para o espaço.
A exposição inclui ainda a Sala Documental Claudia Andujar, que traz para o primeiro plano o ativismo da fotógrafa em defesa dos povos yanomamis, atuando na linha de frente pela demarcação de suas terras e para garantir a saúde dessas populações – ela liderou, por exemplo, campanhas de vacinação na região; e uma sala dedicada ao audiovisual produzida pela Hutukara Associação Yanomami (Hay), liderada por Davi Kopenawa, que assina a curadoria, que inclui os vídeos Morzaniel Ɨramari Yanomami e do trio Aida Harika, Edmar Tokorino e Roseane Yariana Yanomami, além de 18 desenhos de artistas como Ehuana Yaira, Joseca Mokahesi, Oneron e Salomé Ohotei Yanomami, que trazem uma autorrepresentação do povo yanomami.
Mais ações
Com a nova proposta, mais polissêmica, a Galeria Claudia Andujar | Maxita Yano ganha um ciclo de programações públicas, com curadoria de Marilia Loureiro, com foco nos diálogos entre os povos indígenas, sobretudo de Minas Gerais, e aqueles em contexto urbano. Para deixar o espaço mais preparado para receber acolher essa proposta, a artista Renata Tupinambá desenvolve um trabalho de adaptação para que a área externa do pavilhão acomode melhor o público ou mesmo shows, performances e debates. Além disso, a partir dos conteúdos dessas atividades, ela cria uma peça de imagens sonoras, oferecendo aos visitantes uma espécie de trajeto guiado, na intenção de conferir mais perenidade às atividades pontuais – como essas rodas de conversa.
SERVIÇO:
O quê. Galeria Claudia Andujar | Maxita Yano
Quando. Reinauguração neste sábado (26), das 9h30 às 17h30. Visitação de quarta a sexta, das 9h30 às 16h30; sábados, domingos e feriados, das 9h30 às 17h30.
Onde. Instituto Inhotim (rua B, 20, Brumadinho)
Quanto. A partir de R$ 30 (meia) até R$ 60 (inteira). Gratuito às quartas-feiras e no último domingo do mês.