'Experiência'

Baseado na obra de Clarice Lispector, 'A Paixão Segundo G.H.' estreia hoje

Protagonizado por Maria Fernanda Cândido, filme traz a marca do diretor Luiz Fernando Carvalho em mais uma parceria entre cinema e literatura

Por Ana Clara Brant
Publicado em 11 de abril de 2024 | 07:00
 
 
 
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Há exatos 60 anos, Clarice Lispector (1920-1977) publicava um dos seus livros mais densos e enigmáticos, “A Paixão Segundo G.H.”. O enredo pode parecer banal, a princípio. Ao término de uma paixão, uma rica escultora manda embora a empregada Janair e, a partir dali, decide arrumar o próprio apartamento. A faxina tem início justamente no quarto de serviço.
 
Assim que começa a limpeza, ela abre o armário e se depara com uma barata. G.H. (a protagonista é conhecida apenas pelas suas iniciais) dá um grito e começa a se questionar sobre várias questões. Tomada pelo nojo, a artista esmaga o asqueroso inseto e, numa atitude inesperada, decide provar a barata morta, degustando a pasta branca que sai de seu interior.  
 
 
 
  
A história, que é o primeiro livro de Lispector escrito na primeira pessoa, acaba de virar filme e chega nesta quinta-feira (11) aos cinemas. O texto é um grande fluxo de consciência, o que fez com que muita gente considere essa obra infilmável. Não para o diretor Luiz Fernando Carvalho, conhecido por seus grandes trabalhos na TV, como a primeira versão de “Renascer”, além de “Os Maias”, “O Rei do Gado”, “Hoje é Dia de Maria”, “Capitu” e “Dois Irmãos”, só para citar alguns de seus trabalhos.
 
 
Aliás, infilmável é um termo que ele refuta: “Infilmável em relação a quê, eu perguntaria. Se a gente está classificando algo como infilmável, certamente existe uma classificação que determina um conjunto de coisas que são filmáveis, de que a gente pode se aproximar e estão liberadas para que a gente possa pensar sobre elas, e outras que são infilmáveis, que são interditadas. Isso me deixa muito inquieto. Eu não concordo que o mundo seja dividido em classificações, entre o que você pode se aproximar e o que não pode se aproximar, nem mesmo no cinema. O cinema que eu acredito é um cinema aberto, é um cinema que não é legislador, é democrático, plural e que não está respondendo a uma linguagem hegemônica simplesmente”, destaca. 
 
Filmado em apenas duas semanas em um apartamento (diga-se de passagem, que salta aos olhos pelo tamanho, beleza e vista deslumbrante) na avenida Atlântica, em Copacabana, na zona Sul carioca, “A Paixão Segundo G.H.” traz Maria Fernanda Cândido (em uma performance impecável) na pele da protagonista. A atriz revela o que a motivou a embarcar nessa empreitada, que ela considera mais fascinante do que desafiadora.
 
“O que me levou a entrar nesse projeto foi a minha grande paixão pelo cinema, pela literatura e pelo meu ofício. Esse livro é um livro profundo, intimista, introspectivo, que tem uma prosa poética reflexiva. Quando o li pela primeira vez, aos 28 anos, ele me impactou absolutamente. E jamais eu poderia imaginar que um dia eu faria esse filme e interpretaria essa personagem”, conta. 
 
 A parceria entre ela e Luiz Fernando Carvalho vem de longa data e teve início em 2002, em “Esperança”, novela da Globo escrita por Benedito Ruy Barbosa. Os dois ainda trabalharam juntos nas minisséries “Capitu” e “Dois Irmãos”, na série “Afinal, o que Querem as Mulheres?”, todas também na Globo, além da série “Independências”, da TV Cultura. Em 2013, eles chegaram a fazer um tributo a Clarice Lispector na microssérie “Correio Feminino”, exibida como um quadro do “Fantástico”, baseada em crônicas da escritora publicadas em jornais nas décadas de 1950 e 1960 sob o pseudônimo de Helen Palmer. 
 
“São mais de 20 anos em que nós estamos, de certo modo, exercitando essa cumplicidade e levantando um nível dessa confiança e testando um ao outro. Porque, quando eu estou testando e investigando esse limite do ofício dela, querendo que ele se estenda, se expanda, esse limite do que ela entende como o ofício dela, eu naturalmente estarei fazendo a mesma coisa comigo. É uma grande energia de confiança, de cumplicidade e que veio se alimentando durante essas duas décadas. Então é isso que fez com que eu a escolhesse. Na verdade, não fui eu que escolhi a Maria Fernanda; foi esse exercício, esse diálogo estético, artístico e ético da profissão, do ofício de cada um, que se impôs e fez com que fosse inevitável não escolhê-la”, analisa Carvalho. 
 

 

Perca-se 

 
O texto de “A Paixão Segundo G.H.” é considerado complexo e nos permite ter os mais variados tipos de sensações e emoções. Luiz Fernando Carvalho recomenda mergulhar na obra – seja o livro ou o filme – como se fosse uma “experiência”.
 
“Eu acho que a grande questão é entrar com o corpo desarmado. E, quando eu falo corpo, entende-se cabeça, espírito, corpo, como uma coisa única, inseparável. Entrar desarmado na coisa para uma experiência, que tem horas que vai fazer você se perder. Mas, ótimo, perca-se. A gente vive num mundo em que você tem que acertar tudo, acertar o pedido do Uber, acertar não sei o quê. São muitas regras. E um romance, um filme como esse, em que ele está desconstruindo regras, é quase uma proposição para que você se perca um pouco. Não faz mal nenhum”, indica. 

  
 
O roteiro segue à risca as palavras do livro e, apesar de só a personagem principal ter voz, o diretor não o considera um monólogo, e sim um desdobramento de vários eus. “É você conversando com seus vários eus, seus vários estados, os seus vários amanheceres, os seus vários anoiteceres. Não há uma só G.H. Existem várias, e essas várias G.H., às vezes, num momento em carne viva, estão em conflito, estão questionando, duvidando uma da outra, elas não estão em uníssono. O filme é esse conflito, essa unidade fragmentada. Então ela poderia ser, inclusive, interpretada por várias atrizes. E me parece um momento luminoso da trajetória da Maria Fernanda porque nós conseguimos fazer com que todos esses desdobramentos dessa mesma mulher, todas essas G.H. fossem interpretadas pela mesma atriz. Temos muitas Marias Fernandas ali”, considera. 
 
 
A marca do diretor – notório pelo seu apreço por uma estética apurada – se faz presente no longa. Sem contar que o fato de o texto ser em primeira pessoa e intimista se reflete na maneira de filmar de Luiz Fernando Carvalho.
 
“Isso fez com que a linguagem do close seja estruturante e predominante no filme todo, no qual eu tive que criar uma lente para dar conta dessa aproximação não só da Maria Fernanda (G.H.), mas também dos objetos, da barata, da Samira Nancassa (atriz de Guiné-Bissau que interpreta a empregada Janair). Eu trouxe a Janair e eu esgarcei, digamos assim, as entrelinhas do romance. Talvez, por se tratar de um romance da década de 1960, em meio à ditadura militar, por alguma razão, a Clarice, dentro da sua delicadeza, do seu bordado, tenha tido a necessidade de retomar a questão da luta de classes, dos trabalhos mais precarizados. Mas, pra mim, me pareceu fundamental reescrever a história com H maiúsculo. A nossa função é sempre reescrever a história; a história precisa sempre ser reescrita. Então eu esgarcei essas entrelinhas, eu dei volume também a essa questão sociológica do romance, que me parece fundamental”, expõe o diretor. 
 
  
 
E por falar em Janair, para Carvalho, a personagem é a responsável por causar toda a revolução na vida de sua ex-patroa e provocar nela sua “via-crúcis existencial”. “Ela é a detonadora de todo o processo de desconstrução da personagem G.H. Sem Janair, nada teria acontecido. Tudo que antes era pré-amor é mais importante do que o amor. O pré-clímax é mais importante do que o clímax”, filosofa. 
 
  
 

LITERATURA NO AUDIOVISUAL 

 
“A Paixão Segundo G.H.” é apenas uma das obras literárias levadas para a telona ou para a telinha por Luiz Fernando Carvalho (ele contesta o termo “adaptação”). Além da própria Clarice, o diretor já transformou Machado de Assis, Eça de Queiroz, Milton Hatoum, Raduan Nassar, Ariano Suassuna, entre outros, em produtos do audiovisual. Ele ressalta que não separa as palavras das imagens e que, sobretudo, não cria hierarquia entre elas.
 
“Eu não diminuo uma em detrimento da outra. Eu reivindico a palavra como elemento central, assim como as imagens, na formação, na estruturação da linguagem cinematográfica. O meu procedimento é dar potência a essas duas alteridades (a literária e a do cinema) e, a partir, do encontro delas, dar fruto a um corpo, uma terceira coisa, aliás, algo que eu não tenho nome nem gostaria de classificar. Mas esse corpo é o filme. Eu me interesso por esse diálogo”, explica. 
 
  
Apesar de ser apenas o segundo longa-metragem de sua carreira (o primeiro foi o aclamado “Lavoura Arcaica”, de 2011, baseado no romance homônimo de Raduan Nassar), Carvalho sempre foi conhecido também por levar a linguagem cinematográfica para a televisão, seja nas novelas, minisséries ou especiais. No entanto, ele se considera um “cineasta amador”.
 
“E quero continuar sendo amador, assim como Clarice também se considerava uma escritora amadora. Eu sou um amador, eu sou bissexto e só faço estando realmente apaixonado. Eu não faço como uma tarefa. E a minha relação com a televisão, apesar de ter sido uma relação com um nível de independência, de autoralidade muito grande, era uma relação que me interessava no campo da educação. Por ser uma concessão pública, eu sempre entendia a TV como algo que precisaria abraçar uma missão maior para além daquelas da audiência, de vender produtos. E essa missão maior seria exatamente aquela ligada à formação dos cidadãos. A minha estética buscava um diálogo com a escola, com os outros saberes para poder oferecer ao (à) cidadão(a) comum, que não tem acesso a uma galeria de arte, a museus, à história da arte, a possibilidade de uma experiência estética e, consequentemente, uma experiência ética, porque essas duas coisas são, pra mim inseparáveis”, salienta o diretor. 
  

Renascer

E, por falar em TV, Luiz Fernando Carvalho, que encerrou seu contrato com a Globo em 2017, depois de 30 anos, dirigiu a primeira versão de “Renascer”, em 1993. Questionado se já deu uma espiada no remake de Bruno Luperi ele responde: “Não. São outras coordenadas, mas eu tenho grandes amigos ali fazendo. Me faltou tempo. Curiosidade eu até tenho de vez em quando, mas eu não estou em casa nos últimos tempos”, diz.

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