Em 1967, Belo Horizonte ganhou o seu primeiro estúdio profissional de gravação de áudio. Embora esteja comemorando os 50 anos desse feito, Dirceu Cheib, um dos criadores da Bemol, faz questão de lembrar que a história começou cinco anos antes. “Em 1962, eu estava me formando em direito e fui trabalhar com dois ex-colegas de seminário. Um deles, o Célio Gonzaga, foi a São Paulo e conheceu o maestro Edmundo Peruzzi, que tinha acabado de estourar com um disco pela gravadora RGE. O sucesso aconteceu pela criatividade”, sublinha Dirceu, ao observar que o referido álbum trazia uma ideia para lá de original. “O maestro Peruzzi pegou 12 temas de música erudita e gravou com a Orquestra Sinfônica de São Paulo e uma cozinha (termo para designar a parte da percussão) de samba. Isso tocava no Brasil inteiro, o álbum chamava ‘O Samba Visita o Clássico’”, recorda.
Entusiasmado, Gonzaga convenceu Dirceu e o irmão, Afrânio Cheib, a realizarem uma aposta ousada. “Éramos um escritório modesto. Compramos a ideia e criamos a MGL (Minas Gravações Limitada). Foi quando entrei pela primeira vez num estúdio, em São Paulo, para gravar o que seria a segunda edição dessa ideia criativa do Peruz-zi. A música que puxava o disco era ‘Lago dos Cisnes’ (Tchaikovsky)”, lembra Dirceu. Nessa hora, o espírito desbravador típico da juventude outra vez falou mais alto. “Peruzzi convenceu a gente de que sair com um só disco não tinha cabimento, então gravamos mais quatro, um de seresta, outro de marchas e mais outro de samba. Investimos o pouco que a gente tinha, gastamos todo o dinheiro, começamos a vender carro, abrimos uma filial no Rio de Janeiro na cara de pau e soltamos vendedores pelo Brasil”, conta.
A experiência, no entanto, não foi tão positiva quanto o esperado, e, a partir dos problemas, o trio chegou até a solução definitiva. “Pagamos pelos atropelos de quem não tem experiência. Vinha nota falsa, vários problemas. Começamos a vender de porta em porta, o que dava muito certo aqui em BH. Mas isso tudo a gente gravava em São Paulo. O fusquinha já sabia até o caminho, mas era uma coisa muito desgastante”, afirma Dirceu. E foi aí que teve início a Bemol (nome escolhido pela sonoridade), quando, cinco anos depois de muita luta, Dirceu proclamou: “Já que temos esse trabalho todo, vamos montar um estúdio na nossa cidade”.
Ouça disco gravado na Bemol:
“Eureka”. Foi no bairro Caiçara que o primeiro estúdio da Bemol nasceu. Para conseguir uma acústica satisfatória, Dirceu foi se consultar com um professor catedrático da escola de arquitetura da UFMG, mas a conversa não foi das mais estimulantes: “Ele me disse que, para conseguir algo específico como o que eu pretendia, ia ser difícil”. A fim de exemplificar, o tal professor contou uma história. “Até hoje os teatros de Milão são famosos pela acústica. Certa vez, um grupo de estudiosos estava num desses teatros para descobrir a razão daquela qualidade extraordinária de som. De repente um deles chamou a todos os outros do palco e gritou: ‘Eureka!’. Ele tinha descoberto uma parede com várias garrafas de vinho empilhadas. O levaram até o diretor do teatro e ele disse que aquilo não tinha nada a ver, explicou que os músicos bebiam muito e iam jogando aquelas garrafas ali. Olha a inocência do rapaz que acreditou que as garrafas produziam aquele efeito”, diverte-se o ex-advogado.
Já a “Eureka” de Dirceu tem nome e sobrenome: Sérgio Lara Campos foi quem projetou o primeiro estúdio da Bemol. “Antes eu procurei o noivo de uma prima que fazia engenharia. Quando acabamos de fazer a estrutura, numa ida ao Rio de Janeiro, comentei com alguém do meio e me indicaram o Sérgio, dizendo que ele era a pessoa ideal, trabalhava como diretor técnico na TV Excelsior, que ia fechar”, rememora. Aquele que Dirceu hoje reporta como um “gênio da eletrônica”, não teve piedade nas palavras ao se deparar com o que Dirceu e o noivo da prima haviam construído. “Em outras palavras, disse que a gente tinha feito tudo errado, mas ainda dava tempo de consertar. Ficou caro pela necessidade de remodelar tudo”. Pelo visto, valeu a pena, já que o estúdio, hoje alocado no bairro Serra, tornou-se referência.
Ao longo do tempo, passaram na Bemol Uakti (que gravou lá as trilhas do Grupo Corpo, “21” e “Bach”), Pato Fu (“Tem Mas Acabou”), Vander Lee (“Naquele Verbo Agora” e “Sambarroco”), Ivan Lins e Milton Nascimento, entre outros. Trilhas de filmes, como “Lavoura Arcaica”, “A Dança dos Bonecos” e “O Viajante” também foram registradas no estúdio. O filho de Dirceu, Ricardo Cheib, que atua como engenheiro de som há mais de três décadas, destaca as qualidades que tornaram a Bemol uma marca de Belo Horizonte. “Humildade e perseverança. Seu Dirceu sempre foi muito antenado. Correu atrás e soube dar o pulo do gato, trazer o que havia de mais moderno fora do país, nos Estados Unidos, para cá, aprendendo com todo mundo que ele conhecia”, assegura.