Foi dentro de uma modesta loja de brinquedos, em Yalutorovsk, no interior da Rússia, que o artesão Anatoly Mamontov (1839-1905) desenvolveu, em 1890, a primeira matriosca, conhecida popularmente no Brasil como boneca russa. Mamontov usou como modelo uma versão japonesa feita de madeira ou barro.
Mais de um século depois, a boneca que se desdobra em outras continua inspirando. Além de um aclamado seriado na Netflix, intitulado “Boneca Russa” e protagonizado por Natasha Lyonne, ela agora serve como referência para o primeiro romance de Cláudia Fares, que a escritora mineira lança neste sábado (29) em Belo Horizonte.
“A Memória É uma Boneca Russa” parte das lembranças da narradora Heleninha para construir sua trama. O batismo do livro veio por meio de uma leitura simbólica da autora sobre a boneca. “A memória também se abre, desde grandes planos até pequenos cortes. Sempre que a próxima boneca surge, é surpreendente. É como uma simulação do infinito diante dos seres finitos que somos”, explica Cláudia.
Enredo
Logo após montar a exposição “Gabinete de Obras Máximas e Singulares”, para a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, no final de 2016, Cláudia sentiu que o “trabalho árduo” aumentou sua necessidade de retomar o ofício literário e, mais do que isso, contemplar algo relacionado às crianças. “A criança tem uma coisa fascinante que é o olhar da ignorância, ela olha tudo como novo, ao contrário de nós, adultos”.
“Diria que esse é quase um romance de formação, porque eu falo dos mesmos personagens em várias fases: crianças, adolescentes, adultos. Os acompanho e faço companhia a eles”, completa a escritora. Apesar de não querer “se rotular de nostálgica”, Cláudia admite uma “vocação para a memória”. “Porque as memórias, para mim, são muito vivas. Dá para separar memória e imaginação?”, questiona.
A autora conta que somente dois personagens são “reais mesmo, a partir do meu olhar sobre eles”. “Mas não falarei quem são”, disfarça. Na capa da publicação, aparece a tela “O Mamoeiro”, pintada por Tarsila do Amaral (1886-1973), em 1925. “Essa imagem reflete o tempo e o lugar da história”, conclui Cláudia.
Crítica
Um provérbio do centro-europeu define a lentidão com uma metáfora: quem não tem pressa contempla as janelas de Deus. Na era da velocidade e da vertigem por ela provocada, a ociosidade é confundida com desocupação. A própria atividade de ler é revestida com tintas depreciativas. Porque a leitura implica um lento devaneio, contemplação sem fins utilitários. Todavia, é só no mergulho promovido pela leitura que se define a identidade.
O romance “A Memória É uma Boneca Russa”, de Cláudia Fares, é uma dessas janelas em cujo peitoril o leitor se debruça para admirar a paisagem de uma época. Uma época sepultada pela pressa e o progresso predatório, um tempo perdido e só possível de ser recuperado pela lembrança transformada em beleza pela ficção.
O tempo histórico do romance cobre um arco indeterminado da primeira metade do século passado no qual uma família de origem italiana, sobretudo pelo olhar das crianças, vive seu dia a dia numa pequena cidade do interior.
Há poucas marcações históricas. De forma oclusiva, sabemos apenas o essencial, e o essencial é a matéria-prima da memória. Com leveza – qualidade já apontada pelo escritor João Antônio ao comentar “A Fonte Onde se Bebe”, reunião de crônicas da autora editado pela Topbooks –, somos delicadamente apresentados a uma série de episódios na vida de algumas crianças nascidas numa cidade de nome imaginário, onde os adultos se ocupam de trabalhos manuais e meninos e meninas vão descobrindo fascinados o colorido do mundo, como a chegada do circo, a queima de fogos de artifícios ou a passagem de um cometa riscando o céu.
Conquanto os quadros (capítulos) desse painel obedeçam ao crescimento de seus miúdos protagonistas, não há um andamento cronológico severo. Porque as lembranças não obedecem à rigidez do calendário. Elas se sobrepõem porque é assim seu funcionamento em nossas cabeças. (André Nigri / Especial para O TEMPO)
Serviço
Lançamento do romance de Cláudia Fares, neste sábado (29), às 12h, na Livraria da Rua (Antônio de Albuquerque, 913, Savassi). O livro será vendido a R$ 49.