Música

Reginaldo Rossi, que morreu há dez anos, virou meme ao assumir o brega

Cantor pernambucano conheceu o estrelato na década de 1990, graças ao sucesso de 'Garçom', hino da decepção amorosa

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 19 de dezembro de 2023 | 17:11
 
 
 
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A primeira imagem contrasta com a derradeira não apenas pelos traços do tempo, mas, sobretudo, em razão da indumentária. O mancebo bem comportado que abraça carinhosamente sua guitarra, na capa do LP que ficou conhecido como “O Pão”, de 1966, é substituído por um varão de peito aberto, cercado de mulheres em poses libidinosas que jogam as pernas para o alto e deixam o vestido subir até a altura da coxa no “Cabaret do Rossi”, DVD lançado em 2010 que encerrou a carreira fonográfica daquele que faturou 14 discos de ouro, 2 de platina e um duplo de diamante em meio século de atividade artística.

Reginaldo Rossi tinha 70 anos quando faleceu no dia 20 de dezembro de 2013, há uma década, vítima de câncer de pulmão. “Reginaldo Rossi teve três fases distintas ao longo de sua trajetória”, posiciona o jornalista Paulo César de Araújo, autor da polêmica biografia jamais autorizada de Roberto Carlos e do livro “Eu Não Sou Cachorro Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar”, de 2002, um estudo aprofundado sobre o gênero. No primeiro momento, influenciado pela Jovem Guarda, o pernambucano Rossi chegou a tocar nas rádios nordestinas justamente com “O Pão”, expressão típica da época para designar “homem bonito”. 

A pequena gravadora Chantecler, no entanto, não foi suficiente para catapulta-lo ao estrelato de Roberto, Wanderléa e Erasmo Carlos, o que determinou uma paulatina transição para a chamada música cafona – ao lado de Paulo Sérgio, Odair José, Fernando Mendes, José Augusto, etc. –, cujo marco foi a bilíngue “Mon Amour, Meu Bem, Ma Femme”, de 1972, composta por Cleide, que antecipava a “Joana Francesa” de Chico Buarque ao rimar francês com português, e regravada de Leonardo a Fernanda Takai. Finalmente, em 1998, Rossi arrebentou a boca do balão com uma música originalmente lançada em 1987. 

Bêbado

No repertório da Orquestra Mineira de Brega, “Garçom” não pode faltar. “A galera literalmente derrete”, afirma a vocalista Gabriela Dominguez, ao sintetizar a sensação que o hit causa no público, habituado a entoá-lo a plenos pulmões, de preferência arrancando os cabelos e rolando no chão, como, aliás, o próprio cantor estimulava. “Ele deitava no chão e cantava como se estivesse bêbado, incorporando a personagem”, destaca Paulo César de Araújo, em referência a uma atitude que Rossi adotou a partir da década de 1990, quando as redes sociais, especialmente o finado Orkut, contribuíram para o período de maior aclamação popular do cantor. 

Gabriela foi uma das que conheceu esse hino da desilusão amorosa cantando em karaokês, “no momento mais etílico da noite”. “O Reginaldo Rossi era muito autêntico, não tinha vergonha de expressar seus sentimentos, não tinha medo de ser feliz”, exalta a intérprete, que criou “uma versão poliamor” para “Em Plena Lua de Mel”, de 1981, do irresistível refrão: “Dizem que o seu coração/ Voa mais que avião/ Dizem que o seu amor/ Só tem gosto de fel/ Vai trair o marido em plena lua de mel”. 

“A música é muito gostosa de cantar, mas eu tinha um incômodo porque ela coloca a mulher num lugar chato, de crítica e julgamento”, justifica. No enredo atualizado, ao invés da hipótese da traição, a relação se abre. “Toda vez que o seu namorado sai/ Ele volta com outro rapaz/ O que importa o que o povo tá comentando/ Se os três estão se amando/ Moça linda, por favor/ Distribua o seu amor pra quem quiser”, cantarola Gabriela, modificando poeticamente os versos. 

Preconceito

Para uma pessoa que “não nasceu no brega”, filha de um pai músico ligado à MPB, o gênero “toca na nossa essência mais pura e sincera, e se tornou popular ao tratar de assuntos simples mas, como o samba no início e o funk atualmente, sofre preconceito por vir de uma classe social economicamente desfavorecida”, avalia Gabriela. Paulo César de Araújo também identifica esse caráter na discriminação que ele reputa como mais histórica do que contemporânea. 

“Os cantores da década de 1970, como Odair José e Amado Batista, sofreram na carne essa carga de preconceito, a crítica da época era muito cruel e radical, havia um desprezo das elites culturais, que consideravam ‘lixo’ tudo que não era ligado à tradição ou à modernidade”, aponta. O Tropicalismo capitaneado por Caetano Veloso começou a dissolver essas barreiras, não sem sofrer resistências, num contexto em que o patrulhamento ideológico de esquerda e o moralismo conservador de direita não admitiam nuances. 

“Nossa sociedade de classes impõe seus valores tanto na esfera econômica quanto culturalmente, na criação de memória”, analisa Paulo César, para quem “avançamos muito de lá pra cá”, o que possibilitou à geração do brega-funk, do breganejo e do tecnobrega encarar a situação com mais naturalidade. Nesse sentido, Reginaldo Rossi foi um pioneiro. Quando Amado Batista e Odair José torciam o nariz para o epíteto, ele assumiu, com pompa, circunstância e indisfarçável orgulho, o título de “Rei do Brega”, colocando na praça, inclusive, a coletânea “O Melhor do Brega”, de 2003. 

Do brega ao corno

O parlamento brasileiro tem nas mãos uma proposta do deputado federal Pedro Campos, do PSB, para instituir o Dia Nacional do Brega, a ser comemorado no aniversário de Reginaldo Rossi, o que Paulo César de Araújo contesta. “Ele teve a importância histórica de assumir o brega, mas não é a maior expressão do gênero, não está no mesmo patamar de Waldick Soriano”. 

Em 1998, ao participar do programa “Note e Anote”, comandado por Ana Maria Braga na Record, e explicitar toda sofrência de “Garçom”, Rossi rapidamente se transformou no que hoje seria considerado meme. Regalando-se com coisas como o “dia do corno”, o cantor de “A Raposa e as Uvas” passou a incluir na sua música uma perspectiva cômica, a exemplo do humorista Falcão, que usa a canção popular para contar piadas. 

“Ele soube, inteligentemente, ressignificar a palavra. Digo sempre que devemos usar ‘brega’ não como adjetivo, mas como o substantivo que se refere ao estilo musical”, sustenta Paulo César, para quem a raiz romântica e cotidiana é a responsável por unir, em diferentes ciclos, artistas da música sertaneja, do bolero e do funk em torno do gênero. “O brega está sempre se reinventando e se misturando, quando ele assimilou as guitarras dos Beatles e da Jovem Guarda já era uma mudança de sonoridade em relação ao bolero da época do Lindomar Castilho”, arremata. 

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