Legislativo branco, masculino e hétero
Brasileiros elegeram só 30 trans; negros e mulheres ainda são minorias


02/07/21 - 03h00
Sete meses depois de ganhar como a vereadora mais bem votada de Bom Repouso, no Sul de Minas, Paulette Blue, 40, ainda não acredita no feito. “Sem dinheiro, falida, sem ter onde cair morta. Como eu ganhei isso? A ficha ainda nem caiu”, conta, com a simplicidade de quem nunca recebeu nada de graça da vida. A candidatura veio quase por acaso, seguindo a sugestão de um amigo que a achava popular. Quando viu que podia, quis mais. “Depois que tomei posse, mesmo eu sendo a mais votada, eles vieram com um papo de que eu não ia ser presidente da Câmara. Aí eu falei mesmo, os eleitores querem isso, e, se eu não for, vai ter um escândalo na porta da Câmara”, lembra. Não foi necessário briga. Ali foi dado um passo histórico, ou um “bafão”, como ela prefere dizer: Paulette se tornou a primeira travesti a assumir o cargo na cidade de pouco mais de 10 mil habitantes. Representatividade que ainda falta em outras esferas do Poder Legislativo.
Mulheres, negros, homossexuais e transexuais, apesar de votarem, ainda não conseguiram eleger em grande número seus pares. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), em todo o país, foram 30 pessoas trans eleitas em 2020. O número é 275% maior do que em 2016, mas representa tão pouco, que é menor do que a quantidade de vereadores só na capital.
No site da Câmara dos Deputados, há um perfil da composição da Casa, mas a orientação sexual não é sequer citada. Dos 513 deputados federais, 436 são homens, o equivalente a 85%. Só 21 deles são pretos (4,09%), e há 104 pardos (20,27%). Na Assembleia Legislativa de Minas, o quadro não se altera muito: nove dos 77 deputados estaduais são mulheres, ou pouco mais de 11%. Esses números evidenciam espaços de poder ainda com representantes brancos e homens em sua maioria.
A eleição de 2020 foi a primeira em que candidatos e candidatas transgêneros puderam usar o nome social para os cargos de vereador e prefeito no Brasil. Em Minas Gerais, 20 pessoas se cadastraram usando a nova identidade. Paulette se inscreveu com o nome de nascimento, Paulo Roberto, que não tem nada a ver com ela. “Isso foi outra questão. Criaram um projeto de lei para me chamar com meu nome social em plenário porque antes não podia”, lembra. Parte da cidade condenou o avanço: “Tem uns que pensam que eu vou fazer parada gay dentro da Câmara. Gente, claro que não é assim, né?”, diz a vereadora, que acredita enfrenar certa resistência por ser travesti.
“Resistência” que poder ter outro nome: preconceito. E, pior, que tem gerado uma onda de violência contra parlamentares que fogem ao padrão imposto como ideal nesses espaços. Deputada federal eleita por Minas Gerais depois de atuação como vereadora em Belo Horizonte, Áurea Carolina, como mulher negra, conhece bem esse cenário. “Hoje, o que vemos é que pequenos avanços – como a entrada de grupos historicamente subalternizados em espaços antes impensáveis, como a política – vêm provocando ondas de violência. A violência política contra mulheres eleitas, por exemplo, tem crescido assustadoramente e é mais um grave atentado à democracia”, diz em depoimento enviado por escrito à reportagem. Ela cita ainda um cenário de “tentativas de silenciamento e intimidação, quando não ameaças de morte, como as que ocorreram com companheiras negras e trans recentemente eleitas”. Para ela, que também é especialista em gênero e igualdade e mestra em ciência política, faltam ações e políticas que possibilitem que ocorra uma inclusão efetiva nos espaços representativos.
Enquanto as regras do jogo político não são alteradas, uma estratégia usada tem sido a união entre os que dividem a mesma dificuldade. “É preciso ter uma rede, se unir, se inserir em movimentos sociais. Em uma sociedade que se estruturou a partir do racismo, nós vivemos situações de preconceitos diariamente. Eu falo que o que muda é a dose: tem dias que é uma colher de sopa e outros que são copos duplos. Mas a gente não escapa”, conta a vereadora de Belo Horizonte Macaé Evaristo, com o humor e a experiência de quem tomou cada dose desse veneno em diferentes esferas do poder.
Ela foi a primeira mulher negra a ser secretária de Educação da capital e do Estado de Minas, além de ter atuado no Ministério da Educação. Marcos importantes, mas que não a livram de passar por situações de violência no local de trabalho. “É como se corpos negros não fizessem parte daquela paisagem. Quando a gente entra, causa um estranhamento. E temos que lidar ainda com machismo, tentativa de interdição do pensamento, somos interrompidas o tempo inteiro. Nesse sentido, o ambiente político não se difere muito do mercado de trabalho, em que também temos essas situações”, diz. Apesar das dificuldades, ela lembra a importância da diversidade em todos os lugares. “O Brasil é um país plural, e a política tem que ser também para que todos sejam representados”, conclui.
Plenários são palcos de violência e preconceito
“Eles interrompem nossas falas, tentam deslegitimar nossa liderança e nos fazerem sentir como não pertencentes àquele espaço”. “A gente tem que falar mais alto para ser ouvida, fora o desgaste de ser olhada de esquina. Eles tentam nos intimidar a ponto de a gente não querer estar lá”. Os dois relatos são similares e complementares entre si, mas são de pessoas diferentes. O primeiro é da vereadora mais bem votada de Uberlândia, Dandara Tonantzin, e o segundo, da deputada estadual Andreia de Jesus.
As duas ainda têm em comum o fato de serem mulheres negras, eleitas para ocupar espaços de representação e vítimas de violência em plenário. As duas participam de um coletivo de mulheres que se apoiam para lutar contra o preconceito nos plenários.
Dandara “coleciona” situações de violências verbais contra ela. Críticas ao turbante, brincadeiras tendo como foco o cabelo e até questionamento se ela deveria estar lá. “Um grupo de vereadores me perguntou se eu não deveria estar com crachá de assessora. Tive que lembrá-los de que também fui democraticamente eleita”, diz.
Andreia já passou por situações parecidas e, recentemente, ouviu de um parlamentar que ela “precisava estudar mais” e que falava “asneira” quando citava atos de violência contra os negros. E não para por aí: “Eles desqualificam nossos projetos de lei, não nos dão espaços de representatividade e dificultam a nossa atuação. É um cenário de muita violência política”, aponta.
