Prevenção de tragédias da chuva foi negligenciada historicamente em BH
Planejada sem considerar seus cursos d'água e desde então pautando seu planejamento urbano sem levar o meio ambiente em conta, capital demonstra que não está pronta para lidar com eventos como os da última semana
Jessica Almeida, Lara Alves - & - Letícia Fontes
Poucas horas após a avassaladora tempestade que atingiu Belo Horizonte na última terça (28), vídeos publicitários da prefeitura de Belo Horizonte na década de 1970 começaram a circular pelas redes sociais. No primeiro deles, o locutor de voz grave conta uma história, à medida em que se veem imagens de um córrego que passava pela cidade. “Era uma vez um Leitão que parecia manso, mas era bravo e sujo, muito sujo. Quando enchia, entrava até na casa dos outros. Às vezes enfurecia (...) O córrego do Leitão não respeitava nada, ninguém”, diz.
No segundo, que mostra uma avenida e carros se movimentando, segue: “Hoje, o Leitão está por baixo dessa nova e ampla avenida. Uma verdadeira passarela negra que vai ajudar a resolver nossos problemas de trânsito. Cenas de enchentes você nunca mais verá. Dessa própria obra, com o tempo, você esquecerá. Mas não deve esquecer, para o bem da cidade, que o dinheiro de impostos está sendo empregado em realizações como a canalização do Leitão”.
Os vídeos refletem um pensamento vigente na capital desde sua fundação. Planejada no fim do século XIX, Belo Horizonte foi instalada onde fica por conta da qualidade e da fartura das águas das bacias dos ribeirões Arrudas e do Onça. De forma contraditória, já na planta, o projeto urbanístico de Aarão Reis – à exceção do Arrudas – ignorou solenemente essa abundância de cursos d’água.

Vários bairros de Belo Horizonte ficaram debaixo d'água com as chuvas de janeiro
Foto: Flávio Tavares / O Tempo
O resultado dessa mentalidade centenária pôde ser visto novamente após as chuvas de janeiro, que embora tenham sido em volume recorde, apenas escancararam um problema que é endêmico da cidade.
De acordo com o arquiteto e urbanista e professor da Escola de Arquitetura da UFMG Roberto Andrés, já no início da cidade, o córrego do Acaba Mundo, o Leitão e o da Serra atravessavam lotes, visto que o planejamento geométrico das ruas não considerava seus cursos. A consequência disso foi que, já na década de 1920, eles começaram a ser canalizados.
“As cabeceiras vão sendo desmatadas e ali passa ser destino de o esgoto. Isso fez com que córregos passassem a ser mal vistos pela população, já que essa prática ocasionou acúmulo de lixo, poluição, mau cheiro. E então as pessoas deixam de vê-lo como elemento natural de convívio, como era no tempo do Curral Del Rei, o arraial que havia antes de Belo Horizonte”, afirma o professor.
A partir da década de 1960, com a chegada a indústria automobilística ao país, esse processo se intensifica, como observa o geógrafo, professor e autor do livro “Rios Invisíveis da Metrópole Mineira” (ed. Clube de Autores), Alessandro Borsagli. “Com isso, veio uma pressão muito forte pela reforma urbana das cidades, por alargamento de vias, abertura de vias expressas, avenidas etc. E os cursos d’água, nesse novo planejamento rodoviarista, entraram em rota de colisão com a cidade, eram vistos como entraves para o desenvolvimento regular da cidade”, explica.
Esse modo de pensar teve continuidade nas décadas seguintes e o Bulevar Arrudas – fruto da canalização e do tamponamento do principal ribeirão da cidade, foi inaugurado em 2007, com novos trechos criados nos anos seguintes –, é símbolo disso. Como consequência direta dessa mentalidade, dos 700 km de cursos d’água da capital, 208 km estão canalizados ou revestidos, ou seja, 29,71%. Destes, 165 km se encontram em canal fechado e 43 km em canal aberto. Há 200 km em leito aberto na malha urbana e 300 km localizados em áreas de preservação.
Por conta disso, o ambientalista, idealizador e fundador do projeto Manuelzão e professor da faculdade de Medicina da UFMG Apolo Heringer Lisboa ressalta a importância de não se criminalizar a chuva. “A chuva foi muito forte, mas não foi ela que causou isso não. O que ela fez foi expor a fragilidade da concepção da gestão das águas em Belo Horizonte e como o poder público está a serviço da indústria das enchentes, dessas empreiteiras que só sabem impermeabilizar o solo e canalizar os rios”, critica.
Fotografia mostra como é o ribeirão Arrudas e projeção de como seria o cenário ideal
Foto: Denilton Dias / O Tempo
Iniciativas pontuais já existem
Propostas elaboradas nas últimas décadas preveem melhor relação entre a cidade e a natureza
Jessica Almeida - & - Letícia Fontes
Ainda que o pensamento dominante e o planejamento urbano de Belo Horizonte ao longo de sua história tenham sido pautados pela escolha de agir como se os cursos d’água da cidade não existissem, algumas iniciativas nas últimas décadas nadam contra a corrente, apontando para uma melhor convivência entre a vida urbana e a natureza.
Uma delas é o Programa de Recuperação Ambiental de Belo Horizonte Drenurbs, lançado em 2001, como forma de priorizar a reintegração dos cursos d’água à paisagem, em detrimento da canalização como única solução para a drenagem. Em 2010, inclusive, o projeto recebeu uma menção honrosa no Metropolis Awards, premiação organizada pela Associação Mundial de Maiores Metrópoles, que contemplou projetos e experiências que se concentravam na melhoria da população residente em regiões urbanas.
Professor de economia regional e planejamento urbano no Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, João Tonucci cita também o Plano Diretor de Drenagem Urbana, de 1999, e Plano Municipal de Saneamento de Belo Horizonte, de 2016. “Há também intervenções estruturantes com as bacias de contenção. Portanto, já existe um conjunto de planos, projetos e opções. O problema é que isso, em geral, não é priorizado. A maior parte do orçamento municipal e mesmo de recursos que vêm da União ou do governo do Estado vão na direção contrária”, observa.

Parque Nossa Senhora da Piedade é um dos frutos positivos do programa Drenurbs
Foto: Flávio Tavares / O TEMPO
A secretária de Política Urbana da Prefeitura de Belo Horizonte, Maria Caldas, defende que a ideia de manter os córregos em leito natural está introjetada na gestão atual. “Nós sabemos que canalizações e tamponamentos de rios são conceitos de engenharia ultrapassados. Tanto que a prefeitura suspendeu a licitação, um projeto já com financiamento, da canalização do terceiro trecho do Bulevar Arrudas. Porém, é preciso que se entenda que é uma luta a ser travada pela cidade o tempo todo. Existe essa resistência sempre presente do mercado imobiliário, do exagero, da ideia de ter lucro máximo, que precisa ser enfrentada”, afirma.
Um elemento para complexificar essa equação tem a ver com as transformações no clima da cidade, que, inclusive, podem tornar eventos como os vistos em janeiro mais frequentes. O estudo Análise de Vulnerabilidade às Mudanças Climáticas do Município de Belo Horizonte, de 2016, já apontava nessa direção. Ele prevê a intensificação de eventos como inundações, ondas de calor, deslizamentos e dengue. O relatório indica que 42% dos bairros da capital já se encontram em situação de alta vulnerabilidade e prevê que, se medidas não forem tomadas, essa taxa pode chegar a 68% até 2030.
“Portanto, já estamos avisados há algum tempo que esses regimes mais instáveis vão se intensificar nos próximos anos”, ressalta a secretária Maria Caldas. “Temos que nos preparar para isso, e é uma mudança que vai exigir que se transforme inclusive o modo de pensar como a gente constrói as nossas cidades, levando em consideração, de modo mais profundo, a relação das pessoas com a natureza”.
É preciso levar em conta também que os transbordamentos fazem parte da dinâmica das cidades, como lembra o geógrafo, professor e autor do livro Rios Invisíveis da Metrópole Mineira (ed. Clube de Autores), Alessandro Borsagli.
“Essas ocorrências nunca vão acabar, o que pode ser feito é mitigá-las, mas nunca erradicá-las. Essa chuva que caiu em Belo Horizonte recentemente, poderia ser o curso d’água que fosse, provavelmente também transbordaria. Mas, certamente, causaria muito menos estrago do que causou se (a enxurrada) encontrasse com parques ciliares, com vertentes permeabilizadas e outros recursos como esses”, defende o geógrafo.

Ribeirão Arrudas sofreu com intervenções nas últimas décadas
Foto: Flávio Tavares / O TEMPO
É preciso conviver com os rios
O professor Apolo Heringer ressalta que é urgente uma mudança de paradigma na cidade de Belo Horizonte. “A engenharia ambiental tem outros embasamentos, não é o da força bruta, do concreto, mas da relação amigável de convivência com a natureza. A cidade é um ecossistema humano e, de preferência, tem que conviver com os rios”, diz.
Se não houver essa mudança, de acordo com ele, os custos podem ser altos para todos. “Eu falei que o Arrudas poderia explodir próximo à praça da Estação, na avenida dos Andradas (o volume do ribeirão fez com que água fosse expelida e ao menos 70 grades de concreto fossem arrancadas do canteiro central do bulevar, nas últimas chuvas) e vou ratificar: vai explodir Belo Horizonte toda. A destruição que temos vistos nas ruas significa uma grande energia de baixo para cima, nas laterais, empurrando a terra e as estruturas, rachando tudo. E vai continuar se nada for feito”, alerta.
O urbanista Roberto Andrés endossa o argumento de Heringer e ressalta que o alto grau de impermeabilização da cidade é outro quadro que precisa ser mudado. “As chuvas acabam correndo muito rapidamente para os fundos de vales. Temos uma legislação que prevê a permeabilidade do solo nos lotes, mas sabemos que muitos terrenos não cumprem a regra. Precisamos fazer com que isso seja cumprido e, mais do que isso, criar locais intermediários em praças públicas, jardins e coletores, para que a água possa ser absorvida pelo solo. Distribuir pela cidade a coleta da chuva, pra que não seja toda descarregada nos fundos de vale”, afirma.