"A tarde cai, por demais / Erma, úmida e silente… / A chuva, em gotas glaciais / Chora monotonamente/ E enquanto anoitece, vou / Lendo, sossegado e só/ As cartas que meu avô / Escrevia a minha avó / Cartas de amor (...) avô do meu… / Do meu – fruto sem cuidado / Que inda verde apodreceu."
Esses versos publicados em 1917 pelo poeta Manuel Bandeira (1886-1968) são um registro comovente de uma época remota em que atos como escrever cartas, mandar buquês de flores ou se declarar a alguém através de bilhetes eram considerados metáforas perfeitas do amor sincero.
Será que numa era tão tecnológica e instantânea como a dos dias atuais, na qual as pessoas estão cada vez mais dependentes de aplicativos como Tinder, Badoo e Happn para encontrar seus pares, ainda é possível se vivenciar o mesmo encanto e romantismo na hora da paixão?
"É natural que os comportamentos humanos, preceitos e crenças culturais mudem com o passar das décadas, mas isso não quer dizer que as pessoas estão mais racionais e menos românticas", diz a psicóloga clínica Márcia Moreira.
Segundo ela, emoções como o amor e o afeto são inerentes aos seres humanos, independente dos mecanismos que usamos para expressá-las.
"Apesar de todas as mudanças, o amor faz parte de quem somos. Mas há uma chuva de informações na sociedade que nos diz que demonstrar carinho e afetividade pode nos colocar em uma condição de fraco. Por isso muita gente anda tão carente e com medo de apostar em relacionamentos amorosos atualmente", explica.
A psicóloga, mestre em relações interculturais e especialista em terapia cognitiva comportamental, Renata Borja, comenta que com a chegada dos apps de namoro, as relações ficaram mais frívolas e disfuncionais.
"Os relacionamentos atuais costumam ser mais conflituosos e intolerantes. Parece que falta um pouco daquela delicadeza no cuidado e na atenção com o outro", aponta. "Muitas vezes a gente vê as pessoas lidando mal com as frustrações, sendo muito superficiais, exigentes e menos afetuosas. Atualmente parece que existe mais cobrança e pouca compreensão e diálogo", complementa.
Mas se por um lado o mundo digital tornou as interações amorosas em algo impessoal e trivial, ele também trouxe novas possibilidades de conexão entre as pessoas. Hoje, por exemplo, é possível encontrar-se alguém por meio de um telefone celular – algo impossível de se imaginar há algumas décadas atrás.
"Na verdade, não existe evidência de que a tecnologia torne nossos sentimentos mais frios. Pelo contrário, ela pode atuar a nosso favor deixando os contatos muito mais vivos por terem vias que transmitem afeição de forma mais precisa do que a palavra escrita – como acontece por meio da transmissão de áudio e vídeo", explica o psiquiatra Rodrigo Scalia Fernandes.
No entanto, o médico diz que é necessário ter cuidado para não se criar um vínculo doentio com esses periféricos.
"Não pode virar uma distração, diminuindo nosso tempo com a outra pessoa e aumentando as chances de fazermos comparações negativas", adverte ele, mencionando que a grande questão é manter nossa atenção no alvo certo.
"Alguém que dedica 20 horas por semana de seu tempo a um aplicativo ou redes sociais, automaticamente está deixando de lado a pessoa que elegeu para passar a vida junto. Agora, se nosso foco está no ponto certo da relação então conseguimos manter nosso romantismo e desejo acesos sempre", ensina Fernandes.
Química da paixão 'perfeita'
Já o psiquiatra e terapeuta cognitivo comportamental Rodrigo de Almeida Ferreira observa que a química responsável por tornar uma 'paixão perfeita' tem muito mais a ver com a sorte e o comprometimento do que com qualquer mudança trazida pela Internet ou o passar dos anos.
"Construir um relacionamento é muito mais do que selecionar alguém que se encaixe nos nossos sonhos. Tem a ver com tolerância, conciliação e aceitação", afirma.
Para ele, não importa se a pessoa é um romântico à moda antiga ou um adepto dos namoros virtuais, a busca pela chamada 'alma gêmea' nunca é um processo simples e único.
"No Tinder e em outros aplicativos de namoro moderno, as pessoas estão buscando muito só a parte da paixão, da atração e do sexo. Isso acaba sendo um amor vazio, mais longe daquele realizado que precisa da intimidade e compromisso para ser completo", acrescenta.
Rodrigo explica ainda que segundo à psicologia, a base do amor duradouro é um mix de empenho, compromisso e intimidade.
"Há uma teoria que foi desenvolvida pelo psicólogo norte-americano Robert Sternberg, em 1986, que diz que o amor realizado se baseia em três vértices, três pontas de um triângulo. A primeira é a questão da intimidade, que se traduz através do companheirismo. A segunda tem a ver com o compromisso, o contrato social e as regras do que se espera de um relacionamento. E o terceiro diz respeito à atração física, a questão sexual", informa.
Futuro do amor
Mas afinal é possível sabermos como será o amor no futuro?
"Vai ser como sempre foi: baseado em reciprocidade, conexão, intimidade, companheirismo e escolhas de duas pessoas que sabem das dificuldades de uma vida a dois, mas que querem esse caminho e fazem o necessário para ficar juntos. Amar é trabalho duro, mas vale muito a pena", arremata Rodrigo.