Comportamento

Aplicativos arrebanham fiéis e abrem um novo universo para as religiões

Terço digital do Vaticano, Bíblia online e bússola que orienta posição para Meca são exemplo


Publicado em 27 de outubro de 2019 | 11:28
 
 
 
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Brasileiros adoram aplicativos de celular – o Brasil é um dos cinco países que mais os utilizam, e uma pessoa chega a ter mais de 70 deles instalados, segundo a consultoria especializada App Annie. Religião também é um gosto nacional: de acordo com o último censo do IBGE, 92% dos brasileiros seguem alguma, principalmente o cristianismo. Um estudo de 2018 realizado pela Universidade de Baylor, nos EUA, até sugere que usar a internet torna as pessoas menos religiosas. Mas, na prática, o mundo digital parece abrir um novo universo para as religiões.

Neste mês, por exemplo, a Igreja Católica chegou oficialmente ao mundo dos “wearables”, dispositivos digitais “vestíveis”, como pulseiras e relógios. O Vaticano lançou o eRosary, terço em forma de pulseira que se conecta a um aplicativo no celular e ajuda o fiel a seguir a sequência de pais-nossos e ave-marias concebida no século XV. De quebra, conta calorias gastas em exercícios. A novidade sai por 99 euros (quase R$ 440) e ainda não está disponível no Brasil.

A iniciativa está longe de ser a única a conectar fé e tecnologia na palma da mão do fiel. Uma das mais famosas — com 350 milhões de downloads no mundo — é a YouVersion, aplicativo criado em 2008 que reúne quase 2.000 versões da Bíblia Sagrada, em mais de 1.200 linguagens.

Com ele, em vez de carregar um livro grosso embaixo do braço para os cultos evangélicos, a arquiteta Marcela Castro, 27, leva apenas o celular. “Baixei pela praticidade. Às vezes, você vai sair depois da igreja ou se esquece de levar a Bíblia… Hoje, é legal ver que, no culto, 95% dos jovens olham a Bíblia pelo celular e que os mais velhos usam a física”.

Católico, o poeta e economista Antônio Galvão, 59, usa uma Bíblia online há quatro meses. “De manhã, à tarde e à noite, o aplicativo me manda uma mensagem com algum trecho”, explica. Ele tem três Bíblias em casa, mas é graças ao app que lê a obra diariamente.

No livro “E o Verbo Se Fez Bit: a Comunicação e a Experiência Religiosa na Internet”, o pesquisador de comunicação social Moisés Sbardelotto discute como a era digital modifica a relação dos fiéis com as religiões: “Existe um passo a passo para os ritos, um ‘faça isso’, ‘faça aquilo’, a ideia de uma liturgia, uma sequência. Com uma vela ou um terço virtual, vai haver outra gama de ritualidade e de gestos que o fiel precisa fazer e que são novas invenções, como ‘clique aqui’ e ‘digite seu e-mail’”. É como funciona o site e aplicativo Capela Virtual, por exemplo, que permite acender “velas virtuais” para qualquer intenção. O pesquisador também pontua que, agora, as pessoas têm mais liberdade para escolher as práticas que preferem. “É uma religiosidade muito mais ‘on demand’, à la carte, em que cada fiel escolhe qual liderança ouvir e de que rito participar. Não é mais aquela ideia de que a comunidade forma o fiel, e sim o fiel que forma sua comunidade”.

Meca no bolso

O professor Daniel Yussuf, 60, usa três aplicativos sobre islamismo. Nascido muito antes das facilidade digitais, ele aprendeu a identificar a direção de Meca por uma bússola e observando o sol – já que muçulmanos precisam voltar-se à cidade saudita ao realizar suas cinco orações diárias.

Agora, usa um app para se localizar, e outro o lembra do horário exato das orações (que varia em cada cidade). “Semana passada, fui à casa de um amigo da mesquita que não estava usando o aplicativo. Ele instalou e viu que estava orando na direção contrária”, conta. “Todo mundo que é muçulmano e tem um smartphone usa um ou outro aplicativo”. Um deles, o Muslim Pro, já foi baixado por mais de 77 milhões de pessoas em quatro continentes.

Mãe de santo criou aplicativo com reflexões aos 92 anos

Já na casa dos 90 anos, a baiana Mãe Stella de Oxóssi insistia que sua filha de santo, a psicóloga Graziela Domini, 57, explicasse a ela o que era um aplicativo. Graziela nunca entendeu a origem dessa curiosidade. Mas ela rendeu frutos, depois que Stella foi apresentada a um grupo de desenvolvedores digitais: em 2017, no aniversário de 92 anos da mãe de santo, foi lançado o app Orientações de Mãe Stella.

Em áudios com a voz da veterana, que morreu no final de 2018, ele reúne cerca de 200 de seus conselhos, como “O corpo é uma espécie de divindade e precisa ser cuidado” e “O caminho mais fácil é sempre mais difícil”. Em busca de um norte, com frequência, Graziela ouve três deles antes de dormir e em momentos de dificuldade. Ainda que não falem sobre religião diretamente, Graziela diz que é impossível separar as reflexões de Stella da prática do candomblé. “Não existe sacerdote sem sua vivência religiosa”. Um de seus favoritos é “Para amar, é preciso presença e presente” – que fala tanto da dificuldade que a própria Mãe Stella tinha em presentear a quem amava quanto da prática das oferendas.

O pesquisador Moisés Sbardelotto, autor do livro “E o Verbo Se Fez Bit: a Comunicação e a Experiência Religiosa na Internet”, explica que a presença digital das lideranças é uma tendência, especialmente em religiões como o catolicismo, que preza pela conquista de fiéis. 

No Twitter, o papa Francisco conta com pouco mais de 18 milhões de seguidores – número superado pelo Dalai Lama, com mais de 19 milhões. “O próprio Jesus recomendava ‘anunciar a boa nova’”, ressalta Sbardelotto.

Além da religião

O mercado de apps de meditação movimenta US$ 130 milhões, segundo relatório da consultoria Fact.MR. Há um ano, a arquiteta Renata Nogueira, 25, assina o Zen. Sem religião, ela se aprimora espiritualmente online. “Comecei para ajudar na ansiedade. Era evangélica, mas a religião nunca explicou tudo para mim. A meditação traz esse lado da espiritualidade sem religião definida”, esclarece.

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