Quando, aos 28 anos, a estudante de ciência da computação Ariana Carnielli Abranches Ramos recebeu o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA), a sensação foi de alívio. “Desde que eu comecei a ter consciência de minhas decisões, a vida me pareceu mais difícil em algumas situações. É como se houvesse algo, que eu não sabia exatamente o que era, que fazia que certas coisas fossem totalmente opacas. Era como se as pessoas falassem uma língua muito parecida com a minha, mas que eu não conseguia entender”, relata a brasileira hoje radicada na França, que prossegue: “Então, quando finalmente descobri o transtorno, entendi o porquê dessa falta de encaixe, entendi que há uma comunidade de pessoas que sofrem com essa mesma sensação e que pode me ajudar. É um autoentendimento e de alívio muito grande porque é algo que tira o peso da culpa pelos mal-entendidos que aconteceram, porque entendemos que não foi por falta de empatia ou porque eu era burra que frustrei alguém. Que, na verdade, esses episódios ocorreram porque meu cérebro é um pouco diferente, mas que isso não me faz melhor nem pior”, desabafa Ariana, que pondera: “Mas isso não resolve tudo”.
Engajada no ativismo pelo reconhecimento de que casos de desenvolvimento neurológico considerados atípicos para os padrões atuais e convencionais de normalidade devem ser considerados um acontecimento biológico esperado, Ariana reforça que essa sensação de alívio é compartilhada por muitas pessoas que também descobriram o diagnóstico de autismo já na adolescência ou fase adulta. Ocorre que, para além de uma melhor autocompreensão e de um “fazer as pazes com a própria história”, ter conhecimento sobre o transtorno é importante para a busca ativa por acompanhamento de profissionais da saúde, que podem atuar no sentido de oferecer o apoio e o estímulo necessários para que eventuais obstáculos sejam driblados.
Segundo estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU), 1% da população mundial possui diagnóstico dessa condição neurológica caracterizada pelo déficit na comunicação social, abrangendo socialização e comunicação verbal e não verbal, e por comportamentos como o interesse restrito e a repetição de movimentos, como define a neuropsicóloga Bárbara Calmeto, diretora do Autonomia Instituto no Rio de Janeiro. Estudos recentes, entretanto, apontam que a incidência pode ser maior. Um levantamento do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês), divulgado no ano passado, por exemplo, calculou que a prevalência de TEA seria de 1 a cada 54 crianças norte-americanas. Uma proporção que coincide com apontamentos de outras pesquisas feitas em Ásia, Europa e América do Norte, que indicam que até 2% da população teria o transtorno. No Brasil não há estudos amplos sobre o tema, sendo o dado mais seguro uma estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), segundo a qual até 2 milhões de pessoas teriam autismo.
Estigma e bullying são queixas comuns
Mesmo que, em razão de um melhor entendimento científico e médico do transtorno, o diagnóstico tenha se tornado mais comum, os estigmas e os estereótipos que recaem sobre as pessoas com autismo e sobre o autismo em si continuam amplamente disseminados e se impõem como um desafio a mais para essa comunidade, interferindo, inclusive, na precisão da investigação da síndrome. Nesse sentido, “é fundamental reafirmar que seria um equívoco imaginar que toda essa população seria uma massa homogênea e uniforme”, avalia Bárbara Calmeto, lembrando que não há só um tipo de autismo e que cada sujeito lida com os obstáculos muito particulares e deve ser respeitado em sua individualidade.
A psicóloga e neuropsicóloga reforça que, de tão abrangente, a síndrome é entendida como um espectro, com quadros que variam entre mais severos, em que há maior comprometimento de algumas funções cognitivas e em que pode haver ocorrência de automutilação, até manifestações mais leves, algo que pode chegar até mesmo a dificultar a identificação médica de TEA. Além disso, há casos de pacientes que apresentam doenças associadas, como a epilepsia.
Mas, ainda que evitando generalizações, Bárbara pontua que boa parte da população autista já lidou com situações de bullying, como é chamada a prática de atos violentos, intencionais e repetidos contra uma pessoa indefesa, que podem causar danos físicos e psicológicos às vítimas. “São muito comuns os relatos de dificuldade social na escola. Seja pelo jeito de falar, de andar ou pelo centro de interesses, que nem sempre é compatível com a idade, essas crianças e adolescentes, principalmente se o diagnóstico ainda não é conhecido, são mais vulneráveis à exclusão e à chacota, sendo alvo de implicância, tachados de ‘esquisitos’, de ‘chatos’”, sinaliza a profissional da saúde, inteirando que a pessoa ainda tende a se culpar pelos ataques sofridos, se sentindo inapta, mas sem compreender o que ela tem de diferente.
Não por acaso, quando chega o diagnóstico, “vem a sensação de alívio, pois agora esse sujeito sabe o que tem e pode partir para busca dos apoios necessários”, salienta, fazendo coro às observações de Ariana Carnielli que abrem esta reportagem. Ela própria decidiu investigar o autismo quando iniciou o curso de ciência da computação e notou que vinha enfrentando as mesmas dificuldades que a levaram à desistência da graduação em letras. “Eu tinha muita dificuldade de socialização, o que é um desafio na universidade, em que precisamos fazer trabalhos em equipe e interagir com orientadores”, comenta.
Capacitismo. Integrante da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça), Ariana Carnielli é crítica do viés social capacitista, um tipo de preconceito direcionado a Pessoas com Deficiência (PcD), que são vistas como potencialmente incapazes, limitadas ou até mesmo reduzidas à sua deficiência.
“O problema é que, antes que pelo menos nos deem a chance de nos apresentar, somos julgados em função do nosso diagnóstico, como se fôssemos incapazes de fazer determinadas tarefas”, diz ela, que é cautelosa: “Ao mesmo tempo que queremos dizer que somos capazes de viver em sociedade – eu me casei, tenho habilitação para dirigir, estou terminando uma faculdade e prestando estágio em uma empresa –, não quero que todas as pessoas pensem que todo autista será plenamente capaz de fazer tudo, como se bastasse ter força de vontade”, pondera. “Queremos combater o estereótipo e o preconceito, mas sem colocar nas costas de todos os autistas que eles precisam ser capazes de qualquer coisa”, resume.
Barreiras. “Estamos acostumados a pensar a deficiência como um defeito do corpo. Supomos que existe um corpo padrão, ideal, e que os outros corpos são doentes, patológicos e que precisam de certas intervenções para se tornarem aceitáveis. Nós precisamos romper com essa ideia”, diz o psiquiatra da infância e adolescência Ricardo Lugon, que é enfático: “Muitas pessoas vão dizer que há um defeito no cérebro dos autistas e por isso eles não se comunicam. Eu gosto de pensar que o modo como a gente vive e se comunica cria barreiras para pessoas autistas. Esse é um ponto fundamental”.
O pesquisador do campo da saúde mental e de questões relativas a PcD prossegue, reforçando que “há um ponto importante para falar de autismo, que é considerar que parte importante do sofrimento vivenciado por pessoas autistas não é inerente ao transtorno neurológico, mas sim relacionado a uma série de barreiras que colocamos ou que não nos mobilizamos o suficiente para derrubar. Esse é o grande desafio. A vida de pessoas com deficiência se torna melhor quando todos nós (enquanto sociedade) diagnosticamos, reconhecemos e enfrentamos esses obstáculos”.
Acompanhamento. A neuropsicóloga Bárbara Calmeto comenta que o tratamento para pessoas com autismo é sempre individualizado, atendendo a demandas específicas de cada paciente. Lembrando que o transtorno pode ser identificado ainda no primeiro ano de vida, ela assinala que quanto mais cedo se iniciam as intervenções, melhores são os resultados.
No caso das crianças, o primeiro passo é a identificação do déficit global de desenvolvimento. A depender de cada situação, uma gama diferente de profissionais multidisciplinares pode ser acionada – incluindo terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, psicólogos, entre outros.
Já na adolescência ou na fase adulta, o foco passa a ser as necessidades expressadas pela pessoa. “Se tem questão da fonoaudiologia, vamos trabalhar esse aspecto, se tem uma questão de integração sensorial, vamos para terapia ocupacional, se tem questões emocionais ou cognitivas, vamos para o atendimento psicológico”, explica.
Causas. Um artigo da “Revista Autismo” aponta que as causas do transtorno são majoritariamente genéticas. “Confirmando estudos recentes anteriores, um trabalho científico de 2019 demonstrou que fatores genéticos são os mais importantes na determinação das causas (estimados entre 97% e 99%, sendo 81% hereditário), além de fatores ambientais (de 1% a 3%) ainda controversos, que também podem estar associados como, por exemplo, a idade paterna avançada ou o uso de ácido valpróico na gravidez. Existem atualmente (março/2021) 1.003 genes já mapeados e sendo estudados como possíveis fatores de risco para o transtorno – sendo 102 genes os principais”, lê-se na publicação.
Outras características. Ainda segundo o texto do periódico virtual, aproximadamente um terço das pessoas com autismo permanecem não-verbais, isto é, não desenvolvem a fala. Entre as condições clínicas mais frequentemente associadas ao autismo estão distúrbios gastrointestinais, convulsões, distúrbios do sono, Transtorno de Déficit da Atenção com Hiperatividade (TDAH), ansiedade e fobias.
Gênero. O mesmo estudo que apontou que a prevalência de TEA seria de 1 a cada 54 crianças norte-americanas também indicou que, para cada quatro meninos, uma menina teria o diagnóstico. Contudo, se, por um lado, ainda não há explicações científicas sobre essa disparidade, por outro, há uma discussão posta na comunidade autista sobre como ser mulher dificulta a identificação da síndrome. Afinal, até a variação hormonal pode mascarar o diagnóstico, bem como os clichês imputados como próprios do feminino.
Diagnóstico precoce é importante, mas família deve estar preparada
É um consenso entre profissionais da saúde e estudiosos do autismo que o diagnóstico precoce da síndrome tende a ser benéfico para a pessoa, que passa a ter a possibilidade de compreender melhor sua própria condição e de receber estímulos que facilitam o desenvolvimento de habilidades. Porém, é crucial que a família saiba acolher essas crianças. Em caso contrário, essas pessoas podem ficar vulneráveis a supostos tratamentos alternativos, que prometem “curar” o transtorno, mas que, na verdade, podem trazer até mesmo prejuízo para a saúde dos pacientes.
“Quando os tutores descobrem o diagnóstico, eles podem encarar esse fato como uma tragédia. E a gente, como comunidade, faz o esforço para entender essa frustração dos pais, mas é triste ver alguém, principalmente que nos quer bem, advogar contra a nossa existência”, examina Ariana Carnielli. “A mensagem que tem que ficar é que o seu filho não será o que você imaginava, mas isso não é o fim do mundo. Não deveria ser algo encarado como se o seu filho tivesse morrido por ele ser autista”, critica, pontuando que é nesse momento de desespero que muitos pais acabam recorrendo a técnicas ineficazes e perigosas, como a Mineral Miracle Solution (Solução Mineral Milagrosa, em português). Conhecida pela sigla MMS, o “tratamento” recorre ao uso de uma substância muito parecida com a água sanitária usada como alvejante e que é vendida como medicamento.
Felizmente, não foi essa a história da jornalista, pesquisadora, palestrante e escritora Sophia Mendonça, 24, que já vinha investigando a condição desde os 4 anos, mas que só recebeu o diagnóstico aos 11. “Fui acompanhada por profissionais muito conservadores em um primeiro momento, eles viam o autismo como quase um defeito em mim. Como uma doença, como se, por ser autista, estivesse sempre errada por meus posicionamentos e maneira de enxergar o mundo. Para eles, era como se eu tivesse que ser consertada para chegar o mais próximo de parecer – e não é nem de ser – ‘normal’”, relata.
“A boa sorte que eu tive, nesse momento, foi a reação da minha mãe e da minha avó. Embora minha família, de um modo geral, tenha ficado assustada inicialmente, as duas se uniram em orações e ações práticas para que eu tivesse qualidade de vida, para que conseguisse concretizar objetivos e me relacionar com as pessoas”, comemora.
Hereditariedade. Curiosamente, anos depois, a mãe de Sophia, a jornalista, palestrante e escritora Selma Sueli, descobriu que ela própria também possuía o transtorno. “Identifiquei o autismo aos 53 anos recém completados. E só não entrei em parafuso porque já estava familiarizada com o tema, pois acompanhava minha filha há muito tempo”, relata. Mesmo assim, ela passou por uma profunda crise de identidade. “Como assim, eu não sou quem eu pensava que eu era? Demorei para compreender isso. E resolvi, por sugestão da minha filha, escrever um livro sobre o assunto”, observa, fazendo menção à publicação “Minha Vida de Trás para Frente”.
Hoje, ela defende o acesso ao diagnóstico médico como um direito universal. “Para mim, foi uma libertação. Passei a viver com muito mais qualidade de vida”, garante. Por outro lado, passou a conviver com situações de capacitismo, o que antes não ocorria. “Percebi que pessoas que conheciam minha carreira e minha história – e até me admiravam – passaram a me olhar de forma diferente, como se fosse menos capaz, como que se perguntando: ‘Será que ela está entendendo o que eu estou dizendo?’”, pondera.
Preconceito. Sophia também convive com situações de preconceito relacionados ao transtorno. “Apesar de, com 24 anos, ter uma carreira da qual me orgulho muito – tenho um canal no YouTube sobre autismo que é referência no Brasil e fora dele (o Mundo Autista, com cerca de 50 mil inscritos), publiquei sete livros, faço mestrado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e tenho projetos sobre o autismo e que extrapolam ele –, eu, em muitos momentos, fui julgada como ‘a autista’, como se não pudesse ser nada além disso. Era ‘a autista que faz um mundo de coisas’, e não uma pessoa que faz um mundo de coisas e é autista. Isso me doeu muito em alguns momentos”, reconhece.
Ao mesmo tempo, a inquieta pesquisadora conta que alguns chegavam a duvidar do diagnóstico – “como se a gente não pudesse aprender com o ambiente, se desenvolver e ganhar novas habilidades, como se ser autista fosse sinônimo e ser incapaz”, assevera.
Marco. Desde 2007, o dia 2 de abril é dedicado mundialmente à conscientização do autismo. O marco foi criado pela ONU. Na data, é comum que monumentos e prédios sejam iluminados com a cor azul.
Serviço: Neste ano, a Abraça vem realizando uma maratona de atividades virtuais no intento de celebrar o Dia Mundial da Conscientização do Autismo. Na sexta-feira estão programados:
- 10h - Live: Autistar é Resistir - A Participação Política das Pessoas Autistas na Sociedade
Mediadores: William JS
Local: canal do Vereador Celso Giannazi (YouTube) - 16h - Webinar AutSP
Participantes: Vinicius Fidelis e Ricardo Oliveira
Local: a definir - 19h30 - Superlive #Ocupautista
Mediadores: William JS e Ricardo Oliveira
Convidados(as): Guilherme Maderal (Neurocamaradas), Luciana Viegas (Movimento Vidas Negras com Deficiência Importam) e Rita Louzeiro (Presidenta da ABRAÇA, a confirmar).
Local: Canal O Mundo Segundo Ana Roxo - YouTube
A programação completa pode ser acessada clicando neste link.