Tem gente na avenida

Carnaval melhora relação com a cidade e evidencia debilidades e conflitos

Dez anos após a retomada do Carnaval em BH, folia faz que o belo-horizontino conheça mais e se aproprie da urbe; durante o período, desafios urbanos se fazem mais evidentes


Publicado em 03 de março de 2019 | 03:00
 
 
 
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Há uma década Belo Horizonte ensaiava os passos da retomada e reinvenção de sua vocação carnavalesca. E, já nesse primeiro momento, a folia se mostrou capaz de seduzir gente como a ex-dançarina Millene Azze. Afinal, foi a festa que possibilitou a ela redescobrir espaços da cidade – como a rua Sapucaí, no bairro Floresta, e a Vila Dias, no Santa Tereza. Ocorre que Mila, como é conhecida, morou por aqui entre 1986 e 1995, ano em que se mudou para o Canadá, onde vive hoje. Assim, da experiência cotidiana, ela passou a vivenciar a capital mineira da perspectiva, digamos, de uma turista. 

Curiosamente, esse mesmo olhar é percebido por pessoas que não atravessaram as Américas para pousar aqui: mesmo entre aqueles que vivem em BH e região metropolitana, o Carnaval da cidade tem sido capaz de alterar sensibilidades e melhorar a relação entre cidadãos e urbe. Não que essa seja a única ocasião em que o espaço público é tomado de gente, afinal, há vários eventos que permitem essa mesma experiência. Mas, sem dúvida, nenhum reúne um número tão grande de pessoas em ruas, praças, parques e avenidas.

Foi por meio da folia, pois, que a estudante de marketing Hillary Valentim, 23, experimentou o meio urbano sob um novo prisma: foi só quando a bateria do Baianas Ozadas lavou a escadaria do edifício Sulacap, em 2013, que aquele lugar foi por ela percebido, ainda que estivesse em sua rota diariamente. “Agora, quando passo por lá, há algo de especial, que me afeta”, diz.

“Essa é a época do ano que eu mais ando! Acompanho um bloco e depois vou para outro, tudo a pé”, afirma, lembrando que a mudança de ritmo permite observar, em detalhes, o horizonte. “Além disso, a gente acaba descobrindo que as coisas não são tão distantes assim”, observa. Foi, aliás, ao explorar a urbe que ela conheceu o bairro Jaraguá, quando o Tchanzinho Zona Norte por lá passou. Pouco tempo depois, mudou-se para lá. 

Detalhe que Hillary é baiana e vive em BH desde 2003. Até a primeira experiência nas ruas mineiras, a moça costumava torcer o nariz quando ouvia falar da folia. Outra que não encarava bem os convites para a festa, a designer Bruna Menezes, 24, é hoje foliã convicta e entende que “colocar o bloco e o corpo na rua tem muitos significados”.

Encontros. “É inevitável! Esse é um período em que olhamos para lugares que fazem parte do nosso dia a dia de uma forma diferente, sensível”, observa Bruna. Como exemplo, ela cita que, em 2017, viu um turbilhão de questionamentos emergir quando chegou bem cedo à estigmatizada rua Guaicurus, onde foliões se concentravam para o cortejo do Então, Brilha. “Estar ali me fez refletir sobre como o Carnaval impacta a realidade dos espaços”.

Neste ano, a designer já acompanhou o bloco Pula Catraca. Lá, registrou a multidão carnavalesca passando pela avenida Antônio Carlos. Na fotografia, vê-se uma placa que sinaliza: “Faixa exclusiva para ônibus”. Carregada de significado, a imagem condensa a radical mudança de entendimento da rotina urbana, quando os pedestres passam a ser prioridade à revelia dos veículos automotores. Foi justamente essa maneira de vivenciar a cidade que possibilitou um improvável encontro. 

“Fazia anos que não via a avó e a bisavó do meu ex-namorado. Quando me dei conta, estava na porta da casa delas”, diz, lembrando que, claro, foi até lá trocar abraços.

Esses encontros, algumas vezes improváveis, são parte do que tornou o Carnaval algo atrativo para o arquiteto Rafael Brandão, 40. Até 2016, ele preferia “ir para o mato”. Mas, então, percebeu que o fenômeno não se resumia à folia e se conectava, inclusive, com seu ofício. Hoje, ele celebra o evento que possibilitou a ele conhecer regiões que estavam longe de seu radar. “Além disso, até os locais a que estamos habituados se tornam outros, pois deixam de ser lugar de passagem para virar área de convivência, de conversa e de encontro”.

Brandão situa o Carnaval belo-horizontino em um contexto amplo – a folia também tem ganhado as ruas, por exemplo, de São Paulo e de Brasília, que não eram destino nesta época do ano. “É uma desculpa para a gente retomar a cidade, inverter as prioridades. Para mim, o chamariz é justamente experimentar a cidade de outra forma”, observa. Das suas experiências, a mais impactante diz muito dessa “inversão de prioridades”: quando centenas de pessoas fizeram, a pé, a travessia do túnel da Lagoinha, em 2018, durante desfile do Tico Tico Serra Copo, Brandão viu-se em uma catarse.

Conhecer a cidade. Não são poucos os relatos que demonstram como o Carnaval tem permitido conhecer e se conectar à cidade. Algo que Luiz Mário “Jacaré” Ladeira, 78, viveu na pele. Membro da tradicional Banda Mole, fundada em 1975, ele se gaba de conhecer BH como a palma de sua mão. Algo que se fez possível por ter acompanhado a trajetória dessa festa da rua desde a década de 1960. 

“De certa maneira, conhecer é um passo básico da vida na cidade – que não pode ser só uma maneira fácil de você ir ao trabalho, mas também um espaço de convivência, de estar próximo e de encontrar pessoas”, estabelece o arquiteto e urbanista Roberto Andrés. “Conhecer o território é uma forma de se engajar, de ter um sentimento de comunidade – que é um dos sentidos históricos da existência das cidades e que a gente andou perdendo”. Para ele, “BH mudou muito com essa década de tantos Carnavais”.

Folia se esparrama

Rizoma. O Carnaval espalha suas raízes por toda a BH e Grande BH. O bloco Pena Pavão de Krishna (PPK), por exemplo, já esteve em Caeté. Agora, eles voltam a se concentrar no Barreiro.

Laços. “Com local definido, vamos buscar parcerias na comunidade, para estreitar laços”, explica Andreza Coutinho, musicista e integrante do PPK.

Descobrindo a urbe. “Em 2018, parte do público veio do centro – e não entendia o Barreiro como parte de BH. Daí descobriram que não era tão longe assim…”, expõe Andreza.

Conflitos e debilidades são postos em debate

Em crônicas publicadas entre 1930 e 1934, reunidas no livro “Música na Cidade”, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) critica as restrições impostas à novíssima capital mineira que inviabilizavam a realização de festas populares: “As posturas municipais, sacrificando o pitoresco em benefício da segurança pública, proibiram o Judas, como proibiram os balões coloridos da noite de São João”. Por essa razão, diz que a Belo Horizonte de então tinha “as suas noites de junho e os seus sábados de aleluia desprovidos dessa matéria-prima de poesia, demasiado explosiva talvez, mas por isso mesmo mais humana, porque há sempre uma porção de dinamite esperando estourar dentro de nossa pobre alma urbana e civilizada”, escreve o poeta.

O Carnaval, pois, incute discussões neste sentido – afinal, é também um evento forjado na mesma “matéria-prima de poesia”. Ocorre que, ao sustentar que a folia é capaz de fortalecer os vínculos entre cidade e citadinos, é preciso entender que este é um fenômeno complexo. Afinal, via de mão dupla, este é também um período em que conflitos e debilidades do tecido urbano se tornam mais evidentes.

“Os conflitos são inerentes ao espaço público. Afinal, por ser público, reúne mais de uma pessoa e, logo, vai reunir mais perspectivas plurais e até divergentes sobre o que deve, ou não, ser feito ali”, contemporiza o arquiteto e urbanista Roberto Andrés. Mas, “isso não significa que essas disputas não tenham que ser equacionados para que as partes, na medida do possível, fiquem satisfeitas”.

Entre as questões que se impõem, o grande volume de lixo que se vê espalhado pelas vias e a distribuição de banheiros químicos ao longo do trajeto dos blocos são alguns dos pontos a serem observados com acuidade. “É importantíssimo cuidar dos resíduos e pensar Carnavais com menos lixo”, situa Andrés. 

Outro traço que ganha relevo com o evento se conecta a possibilidade de grupos sociais em diferentes situações gestarem laços. “Em 2014, o Filhos de Tcha Tcha esteve na região do Isidoro. Naquele momento, muitos tiveram um primeiro contato com a realidade de quem luta por moradia. Algumas dessas pessoas, então, passaram a se engajar na luta daquelas famílias”, diz Andrés. Todavia, é necessário cuidado para que a experiência não seja vazia.

Debilidades. Nem tudo, no relacionamento carnavalesco entre cidadão e urbe, é divino e maravilhoso. Impossível ignorar, pois, que a experiência, nas ruas joga luz sobre problemas urbanos que existem o ano inteiro – e se tornam mais óbvios nesse período do ano, quando “as pessoas começam a ver a cidade com tudo o que ela é”. “E, sim, faltam sombras, passeios são estreitos e esburacados... É então que notamos como este lugar é maltratado para o uso pedestre”, examina Andrés.

“A festa traz a possibilidade de trabalhar diversas pautas e o desafio dessa grande festa popular e coletiva é minimizar transtornos”, estabelece o também arquiteto e urbanista Sérgio Myssior. Membro do movimento A BH que Queremos, ele acredita que muitas das pautas que emergem com o Carnaval, se discutidas, podem trazer benefícios que serão percebidos para além dos cinco dias de Carnaval. 

Ao argumentar que o poder público deve agir no sentido de “mitigar aspectos negativos, mas sem inibir essa grande manifestação pública”, Myssior ecoa em gênero, número e caso a crítica que Drummond tece na citada crônica, na longínqua década de 30.

O fortalecimento da comunidade

Raízes. O Carnaval de BH tem origem ligada a movimentos populares, que valorizam os costumes e particularidades de cada região. É o que analisa o arquiteto e urbanista Sérgio Myssior.

Cidadania. Ao ganhar corpo, a folia passou a ter apoio do poder público. Myssior, no entanto, lembra que, vindo do engajamento das pessoas, a festa é um traço de nossa cidadania, pois indica que as pessoas têm capacidade de se autoorganizar.

Na rua. O urbanista observa que, em sua retomada, a festa se estabeleceu no espaço público – conferindo máxima importância a esse lugar e reforçando a mensagem de que ele que deve ser valorizado e mais vezes utilizado.

Diverso. Outro aspecto celebrado é a diversidade, presente no conteúdo e na localização: além de agrupar diversas bandeiras e abraçar causas, a festa vem se democratizando e é realizada em diversas regiões da cidade.

Comunidade. Esta é também uma ocasião de encontros. Assim, ao conhecer moradores do seu bairro, é possível que, no futuro, questões coletivas locais passem a ser discutidas, possibilitando a construção de uma comunidade mais atuante, defende Myssior.

 

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