Talvez hoje pouca gente saiba, mas, no passado, algumas casas de Belo Horizonte eram conhecidas por seus perfumes. Numa época em que era mais comum haver jardins, uma espécie de paisagismo característico de Minas Gerais fazia com que houvesse árvores em flor nessas áreas das residências durante a maior parte do ano. Com isso, era comum que as pessoas andassem pelas ruas e fossem capazes de identificar a quem pertenciam só pelo cheiro do jardim.

Essa é uma das informações levantadas pela pesquisa que resultou no livro “Casa Nobre: Significados dos Modos de Morar nas Primeiras Décadas de Belo Horizonte”, cujo lançamento acontece na próxima terça (2). Coordenado pela professora da Escola de Arquitetura da UFMG Celina Borges Lemos, o estudo apresenta um mapeamento de aspectos sociais, culturais e históricos da constituição de Belo Horizonte e sua arquitetura, a partir da “casa nobre”, um tipo de casa senhorial brasileira muito presente na arquitetura da capital. 

Com uma equipe multidisciplinar formada por arquitetos especialistas em diversas áreas, com sociólogos e historiadores, e um recorte temporal da fundação da cidade, de 1897 até 1947, a pesquisa levantou mais de 200 casas. O livro traz 30 delas, apresentando características de suas arquiteturas, os materiais adotados na construção, além de aspectos projetivos e estéticos. Essas e outras informações oferecem um escopo que ajuda a delinear a cultura e o cotidiano dos primeiros anos da cidade. 

“Nosso interesse inicial foi entender a primeira fase da ocupação da cidade, que está ligada a arquitetos e engenheiros que vieram com a comissão construtora, muitos dos quais naturalmente permaneceram”, explica a professora. “Essas casas, que intitulamos nobres, têm um valor simbólico e contam a história de uma nova sociedade sonhada a partir da República no Brasil”, completa.

Todas as casas presentes no livro estão em bom estado de conservação. Muitas delas são tombadas pelo patrimônio histórico. Boa parte abriga equipamentos públicos, mas algumas continuam pertencendo às famílias originais. As casas da primeira fase (de 1897 a 1920), em geral, pertenciam aos dirigentes da cidade, funcionários públicos altamente graduados – inclusive uma das edificações catalogadas foi o Palácio da Liberdade. Com o passar do tempo, a chegada da indústria e o poder econômico se equiparando ao político, tem-se a destituição da ideia de que só morariam em palacetes as famílias que estivessem vinculadas ao governo. Nasce um poder paralelo, que é o da economia, e as casas passam a responder a novas demandas, traduzindo na arquitetura e na estética novos modos de vida. “A cidade se transforma, a casa se transforma com ela, e vice-versa”, observa Celina.

Sutilezas nos usos e nas disposições dos espaços dão pistas dos modos de vida, como explica a mestranda da Escola de Arquitetura da UFMG e integrante da pesquisa Danielle Amorim Rodrigues. “O jardim indica a questão do público e do privado, a relação dos moradores com a rua. A localização dos banheiros, o tamanho e a disposição dos dormitórios. As divisões entre área masculina e feminina. Normalmente, havia o quarto de trocar, ou boudoir, e quarto de costura interligados. Enquanto em outra parte independente ficavam escritório, biblioteca, sala de música, tudo mais próximo de uma linha masculina”, afirma.

Celina chama atenção para o modo como a estrutura da casa se modifica à medida que a mulher passa a ocupar espaços tão relevantes quanto os do homem na sociedade. “Ao chegar mais próximo do fim do período que pesquisamos, a sala da mulher deixa de ser de tarefas e vira sala de estar, passando a ficar praticamente ao lado do escritório do homem”, diz.

Outra coisa curiosa é a entrada da cozinha no mundo social da casa. “Nos primeiros projetos, era totalmente isolada. No entanto, começa a adentrar e fica próxima de uma área intermediária, muito utilizada, versátil. O número de empregados começa a diminuir, e a cozinha passa a ser uma tarefa dos moradores. É interessante como as pessoas se destituem de um ar de nobreza inaugural, de pompa e circunstância, e vão ser humanas como os outros”, diz.

Lazer se reflete nas construções

Desde sua origem, a história de Belo Horizonte esteve intimamente ligada ao cinema. Já nos primeiros anos, existe uma vivência de exibição cinematográfica em cafés, adros de igrejas, feiras e bares. Em 1906, com a inauguração da primeira sala de projeção, a atividade se torna lazer definitivo, como observa o pesquisador de cinema Ataídes Braga, autor do livro “O Fim das Coisas”, que mapeou os cinemas de rua da capital.

Acontece todo um desenvolvimento da relação de sociabilidade. Você vê uma foto do Cine Brasil, em 1932, e é um mar de gente. Homens de cartola, mulheres com leques e plumas. Era um momento de encontro e uma atividade extremamente popular”, comenta.

A questão do lazer também tem papel significativo na pesquisa da professora Celina Borges Lemos. Na primeira fase retratada pelo livro, os moradores das casas, de alguma maneira, ainda não têm noção do que seria sua referência de lazer. Porém, na segunda fase, é como se houvesse uma minirrevolução em termos de interesses. “Isso está ligado a um marco muito importante na história de Belo Horizonte, que é a chegada do lazer público e gratuito. Eram os footings, encontros nas praças, as circulações, Carnavais, passeios no parque”, explica.

Com isso, a arquitetura começa a revelar também a ideia de se criar um lazer próprio, os quintais viram áreas de recepção, os jardins são muito bem trabalhados, e a piscina também se torna uma área de aglutinação. “Quando a cidade ganha o cinema e os clubes se fortalecem, a casa também começa a criar áreas de dimensões maiores para a realização de festas. Sempre que acontecia uma revisão das práticas de lazer da cidade ou da cultura do consumo, já presente, a casa oferecia uma alternativa para as festas privadas, sempre vinculadas aos frequentadores das festas públicas”, afirma.

Relevância. Trabalhos como o da professora Celina e o de Ataídes Braga são essenciais para que possamos refletir sobre nossos valores e as mudanças que transcorrem na sociedade ao longo do tempo. “É importante porque são práticas que cada vez mais perdemos individual e coletivamente. Fazer o resgate histórico de uma cultura, um momento, uma performance da sociedade mineira ao longo dos tempos, é fundamental para que possamos ver onde perdemos determinados valores e sejamos capazes de recuperá-los”, observa Ataídes.

No caso das casas nobres, ainda têm-se, condensados num inventário, ensinamentos técnicos e tecnológicos sobre a história da arquitetura que em grande parte podem ser reaproveitados. Mais do que isso, “essas casas asseguram um bucolismo muito positivo que a sociedade belo-horizontina tem perdido, uma facilidade de interlocução, de sociabilidade, de companheirismo e também de generosidade”. “É uma espécie de gentileza que a casa tinha com a rua, uma facilidade de acesso, uma troca constante. Tudo isso mostra um tipo de direito civil à urbanidade que nossa sociedade não tem conhecido mais. São representantes de épocas que queriam deixar legados do bem-estar e do bem-relacionar”, conclui a professora.

Lições para o tempo presente

Muito antes de se envolver com política, o vereador Gabriel Azevedo (PHS) se encantou pela história de Belo Horizonte. Seu interesse foi despertado pela lúdica percepção de que o mapa do centro da cidade se parece com um tabuleiro de xadrez e, desde então, vem acumulando uma coleção de cartões postais antigos, mapas, objetos de hotéis e fotografias, além de referências imateriais sobre a capital de outros tempos. 

Para ele, que tem especial interesse pelas décadas de 1930 e 1940 – tendo inclusive celebrado seu aniversário recentemente no Brasil Palace Hotel, edificação de mais de 75 anos –, essa época, embora também tivesse seus problemas, tem muito a nos ensinar. “É uma ideia de cidade como espaço público e palco da democracia e da interação, em que não era apenas via de passagem, mas lugar de encontro e convivência”, observa Gabriel, que é um dos idealizadores do projeto Janela Aberta, lançado no fim do ano passado, que pretende arrecadar dinheiro para comprar um anexo entre os edifícios Sulacap e Sulamérica para requalificar o centro da cidade.

A visão do vereador está alinhada à da socióloga e gestora cultural Karla Bilharinho Guerra, que organizou, junto com Celina Borges Lemos, o livro “Casa Nobre: Significados dos Modos de Morar nas Primeiras Décadas de Belo Horizonte”. “É um bom ponto de inflexão e reflexão ver como a vida na cidade evoluiu. As casas tinham muros baixos, poucas grades, eram abertas para a rua. Hoje a cidade é voltada para os carros, as áreas de pedestre são cada vez menores, as construções são totalmente isoladas. É triste, mas é nossa realidade atual”, afirma.

Lançamento

“Casa Nobre: Significados dos Modos de Morar nas Primeiras Décadas de Belo Horizonte” terá dois lançamentos: dia 2 (terça), na Escola de Arquitetura da UFMG (r. Paraíba, 697, Funcionários), às 19h, quando será distribuído gratuitamente; e dia 20 (sábado), às 11h, na livraria Quixote (r. Fernandes Tourinho, 274, Savassi), onde será vendido a R$ 40.