Tendência

Como a moda se revela um termômetro das crises e transformações sociais

Expressão artística antenada aos acontecimentos mundiais, universo fashion responde a mudanças econômicas, geofísicas ou geopolíticas do planeta


Publicado em 24 de março de 2022 | 03:00
 
 
 
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Tendências“A moda parece uma espécie de absurdo”, escreveu Demna, diretor criativo da grife Balenciaga, em nota aos convidados da Semana de Moda de Paris, realizada no início deste mês na capital francesa. Um dos lançamentos de coleção mais esperados do evento, o desfile da marca de luxo quase não aconteceu. No comunicado, o designer revela que a Guerra na Ucrânia desencadeou nele “a dor de um trauma passado” que ele carrega desde 1993, quando precisou fugir junto de sua família e de milhares de pessoas de Sukhumi, cidade da Geórgia que ficou em meio a uma disputa territorial pela região da Abkhazia, considerada independente pela Rússia, mas reconhecida internacionalmente como parte da Geórgia, que, no passado, foi uma antiga república soviética. Para ele, por razões pessoais, mas também por ordem coletiva, parecia soar absurda a realização de um evento para se falar sobre moda estando no contexto de uma crise humanitária que aflige, sobretudo, o Leste Europeu. 

Apesar do desconforto, o desfile da marca aconteceu. “Percebi que cancelar o show significaria ceder, render-me ao mal que já me machucou tanto por quase 30 anos”, explicou Demna no comunicado. Contudo, como outras diversas casas de alta-costura presentes no evento, a marca incorporou à apresentação gestos em solidariedade à Ucrânia. Na ocasião, a bandeira nacional ucraniana foi posta sob os assentos dos convidados e o estilista, leu um poema de Oleksandr Oles, um dos principais escritores daquela nação. Além de prestar homenagens ao país, a Balenciaga ainda usou a plataforma para discutir temas como a crise climática e a realidade virtual em uma performance dramática que sinalizava preocupação com o presente e com o futuro. 

A apresentação da grife e a própria dinâmica da Semana de Paris – que, por causa da guerra no Leste Europeu, teve viés mais solene, deixando de assumir um caráter festivo pela retomada do evento graças ao arrefecimento gradual da pandemia da Covid-19 – são alegóricas de como a moda não se faz em uma redoma alheia e blindada dos acontecimentos do mundo. 

“Assim como qualquer outra expressão ou linguagem artística, a moda, por lidar no campo da estética e simultaneamente inspirar e instigar o consumo, está diretamente ligada a sensibilidades e comportamentos e, portanto, a mudanças econômicas, geofísicas ou geopolíticas do mundo. E, ao estabelecer essa sinergia, ela passa a ser uma espécie de termômetro da sociedade. Então, naturalmente, a moda responde também aos momentos de crise”, avalia Tarcisio Luiz D’Almeida Alves, coordenador do curso de design de moda da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 

O especialista lembra que, com a deflagração da Primeira Guerra, entre 1914 e 1918, caíram em desuso roupas femininas pesadas e apertadas, e itens mais práticos ganharam os guarda-roupas. “Elas começaram a desempenhar trabalhos que, antes, eram predominantemente masculinos e os vestuários precisaram ser repensados, inclusive para evitar acidentes”, comenta. Além de contemplar essa transição do papel da mulher na sociedade, outros aspectos vão impactar os modos de fazer moda naquele período.  

“Conflitos de repercussão global – como a Primeira e Segunda Guerra Mundial (1939-1945) ou o crash da Bolsa de Valores de Nova York (em 1929) – geram a escassez de matéria-prima, que também vai afetar essa indústria. Nesses períodos, a verve criativa, mais exuberante, precisa ser deixada um pouco de lado e é necessário se ater ao que se tem à mão”, pontua, lembrando que a moda engloba um complexo sistema industrial e comercial, que inclui desde a produção de fibra, no campo, passando pela tecelagem, pelo processo de criação e de confecção das peças, seguidos por divulgação, distribuição e venda dos itens. 

Uma cadeia que tem continuidade por meio de ações de reciclagens de peças e de revenda de produtos já utilizados, que alimentam o ecossistema dos brechós. E mesmo essas práticas podem ser vistas como associadas a novos comportamentos socioculturais. A doutora em tendências Suzana Cohen lembra que, a partir de fenômenos como a ansiedade ecológica, que já é um efeito perceptível das mudanças climáticas, novos padrões nos modos de se vestir têm sido percebidos. “Notamos, por exemplo, mais jovens que usam peças descombinadas, reciclando o próprio item do guarda-roupa de forma autêntica e despojada, tendo como fundo essa preocupação ambiental”, sinaliza. 

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As observações estão alinhadas com movimentos do mercado da moda identificados por Alves. “Hoje, temos marcas que questionam se precisamos mesmo ter itens novos a cada estação, alimentando esse consumismo excessivo a partir de produtos efêmeros. Além disso, já está posto um debate sobre a necessidade de se pensar em peças que tenham maior durabilidade”, cita. 

Pandemia 

Fazendo menção às coleções anunciadas na Semana de Paris, Tarcisio Luiz D’Almeida Alves cita que é possível identificar, na indústria da moda, influências da experiência pandêmica vivida a partir do início de 2020. “Com a crise sanitária, as pessoas passaram a ficar mais tempo em casa. E isso impactou nossa compreensão sobre como nos vestir”, analisa. “Como efeito disso, podemos notar que o conforto passou a ser característica essencial, aparecendo como princípio de criação e acompanhando a concepção estética no trabalho de diversos estilistas”, sinaliza. 

A publicitária Deborah Zandonna, que atua como estrategista de imagem, concorda. “Se a gente observar o que era posto como tendência em 2020, vamos ver que muita coisa não se concretizou. As botas metalizadas, que eram promessas, acabaram não acontecendo justamente por causa das contingências que o coronavírus exigiu de todos nós”, aponta. “Em vez disso, vimos o sport wear e o street wear aparecerem bem fortes. Nesse período, houve a popularização de itens como conjuntos de moletom, tênis e calças jogger”, diz. 

Deborah acredita que, se de fato a pandemia for superada, “podemos esperar, para daqui um ou dois anos, o retorno dos anos 2000, estilo que está sendo chamado de Y2K”, garante. “Estamos falando de calças de cintura baixa e mais largas, minissaias, cropped e, talvez, dos saltos finos, embora os tênis devam seguir em alta. Também estamos falando de cores fortes, vibrantes e até hipersaturadas, chamadas de dopamine colors. E isso também está ligado ao momento que vivemos. A título de exemplo, as apostas da Pantone para 2021 eram o amarelo e o cinza, dialogando com essa experiência de dias cinzentos, de um período difícil, mas também com uma ideia de esperança, com uma expectativa por dias mais solares”, analisa. 

“Portanto, acredito que o uso de tanta cor tem, sim, a ver com um desejo de vida, de ir à rua e de ser visto depois de tudo o que passamos nos últimos dois anos”, diz, lembrando que o fenômeno repete o passado. “Podemos lembrar que após a Primeira Guerra tivemos os ‘loucos anos 20’, com uma moda cheia de brilho e personalidade”, conclui.

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