Desde a separação, no ano passado, a nutricionista Aline Zotti, 36, e o ex-marido dividem os cuidados com a filha Luísa, 6. “Como ainda não tivemos audiência da guarda, a juíza estipulou que ela ficasse com o pai aos finais de semana”, conta. Mas, desde os primeiros casos de coronavírus, em março, Aline chamou o ex para uma conversa. “Expliquei que seria arriscado ela ficar indo e vindo, mesmo que tomando todas as precauções. No começo, ele aceitou, mas depois exigiu vê-la. Ele entrou em contato com o advogado, que falou que nada deveria mudar, a não ser que entrássemos em um acordo. Mas isso nunca aconteceu”, afirma.

“No prédio dele já tem casos confirmados (de coronavírus). Minha advogada me orientou a fazê-lo assinar um termo se responsabilizando, caso acontecesse algo com a nossa filha, mas ele se recusou. Então, estamos nos dividindo ainda mais. A Luísa fica duas semanas comigo e duas semanas com ele”, conta.

A dinâmica da quarentena provocou incertezas nos acordos entre pais separados pela guarda dos filhos. Por todo o país, decisões judiciais refazem o que havia sido estabelecido. Em Belo Horizonte, no último mês, um juiz concedeu liminar a uma mãe, em segunda instância, após ela pedir à Justiça que a filha do casal, de 2 anos, não receba visitas do pai por ele não adotar medidas de segurança contra a Covid-19. A mãe argumentava que o homem tem participado de festas e churrascos com aglomerações. Em outro caso, uma decisão em São Paulo suspendeu as visitas do pai à sua filha por ele ser piloto de voos internacionais em uma companhia aérea. Foi argumentado que a menina tinha um irmão menor no grupo de risco. 

Segundo o advogado e professor de direito de família na Faculdade de Direito Milton Campos, Rafael Baeta Mendonça, não existe uma previsão legal específica para a situação que estamos vivendo. “É comum que os pais com uma característica mais protetora pensem que o outro não vá tomar os cuidados, mas o que precisamos pensar, a princípio, é que tanto a mãe quanto o pai têm responsabilidade de cuidar do próprio filho. É claro que, para o antigo casal que já tinha uma situação muito litigante e aguerrida, a tendência é que se agrave”, destaca. 

Segundo Mendonça, é mais conveniente que se tente uma divisão dos cuidados com os pequenos. “O que tem que prevalecer em casos que envolvam direito de família é o bom senso do pai e da mãe para perceber situações de risco, se a criança tem doença respiratória, se alguma das partes está em condições de maior exposição de risco de contágio. Nesses casos, deve partir dos próprios genitores a consciência de que a convivência de forma física deva ser interrompida, sem prejuízo da ampla convivência por vídeo, ligação e por aí vai. Quando falta bom senso, pode ser acionado o Poder Judiciário para que interfira e, portanto, suspenda a convivência daquele que causa mais risco à criança até passar a situação de pandemia”, explica.

Mas o especialista ressalta que a melhor solução é o bem-estar do filho. “Tem alguns casos no escritório que, pela situação delicada, o juiz acabou fixando a convivência de modo virtual. Em qualquer caso envolvendo criança ou adolescente, o que vai ser observado é o melhor interesse para o menor. O interesse dos pais fica em segundo plano”, completa. 

Dados

209.957 crianças e adolescentes vivenciaram o divórcio dos pais em 2015, segundo levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Impasse
Mas nem todos têm a sorte de uma solução amigável. O chefe de cozinha Jorge Toledo, 27, e a ex-mulher ainda não alcançaram um acordo de guarda compartilhada na Justiça. Com o isolamento, um conflito que já se arrastava piorou. Agora, ambos encontram dificuldade para conciliar a divisão no cuidado com a filha de 2 anos. Jorge não vê Sofia há mais de quatro meses.

“A mãe dela está dificultando as coisas. Não permite que eu a encontre e usa o argumento de que está em casa com a família, em quarentena. Me disse que, na casa dela, ninguém sai nem entra. Não pude dar um abraço no aniversário dela”, desabafa. 

A situação do chefe de cozinha não é isolada e exige alerta. De acordo com a psicóloga de casais, Leni de Oliveira, caso haja um impedimento total do relacionamento de uma das partes com os filhos, pode ser um sinal de que um dos pais esteja se aproveitando da situação de vulnerabilidade da pandemia para promover a “alienação parental” – processo de manipulação psicológica de uma criança em relação a pai, mãe ou outros membros da família para gerar distanciamento e desconexão da relação familiar. 

“Os pais sempre vão discordar de pontos na criação dos filhos, são pessoas diferentes vindas de famílias diferentes. Em casos de casais separados, o que deve ter em comum é o desejo pelo bem-estar da criança, já que essa disputa entre eles pode causar a perda da identidade e da imagem. A criança fica confusa e, dependendo da intensidade do abuso psicológico, os impactos podem ser: fracasso escolar, sentimento de desespero, comportamento hostil, falta de organização e depressão crônica. Se os envolvidos não conseguirem perceber essa disputa, pessoas próximas ou mesmo a Justiça devem intervir, sempre buscando o bem-estar da criança ou do adolescente”, orienta. 

Neste ano, a lei de alienação parental completou dez anos. A legislação foi criada com a promessa de garantir boa convivência entre pais e filhos. As punições para quem infringir a lei pode ir de advertência e multa e, em casos mais graves, suspensão da autoridade parental. Atualmente, uma proposta tramita no Senado e pede a alteração de alguns pontos da lei, como a criminalização da conduta de falsa acusação de alienação parental. 

Mães se desdobram para conciliar família e trabalho
Luciana* é mãe de duas crianças, de 12 e 4 anos, frutos de relacionamentos distintos. Segundo a vendedora, desde que os decretos com as regras para ficar em casa foram publicados, os pais das duas crianças não foram mais visitar os filhos. “Não houve combinado de que eles não poderiam vir por medo de contaminação ou algo relacionado ao coronavírus. Um deles comunicou que não viria pela segurança do filho. O outro faz chamada de vídeo para vê-lo, vez ou outra”, afirma. 

A tecnologia ajuda, claro, mas está longe de substituir abraços e beijos de verdade. “Eles perguntam pelos pais, sentem saudades. Amo os meus filhos, mas lidar com as responsabilidade de casa, o trabalho remoto e o cuidado integral deles não é missão fácil. Em certos momentos, eu me sinto exausta. Dividir a responsabilidade seria razoável”, ressalta. 

Segundo Rodrigo Tavares Mendonça, psicólogo especializado em psicoterapia de família e de casa, a queda do convívio pessoal faz falta. Ele chama a atenção dos pais para os sentimentos que os desafetos podem gerar nas crianças. “Crianças pequenas, especialmente, podem imaginar que o pai que cuida pode estar impedindo o contato com o outro ou que o pai que pega nos fins de semana sumiu sem motivo. É preciso diálogo em linguagem acessível para que as crianças compreendam. Mais do que os adultos, as crianças precisam saber que estão sendo cuidadas e amadas para se desenvolverem sem perturbações graves”, explica. 

*Nome fictício 

Minientrevista

Paulo Akiyama
Advogado e especialista em direito da família

Como fica a situação de famílias formadas por pais separados e que têm filhos em guarda compartilhada durante a quarentena? Estamos vivendo momentos inimagináveis, portanto, todos estão precisando se reinventar bem como acomodar situações. Inicialmente, o próprio judiciário determinava que a criança, em tempos de pandemia, permanecesse com o genitor que se encontrava, mantendo assim o distanciamento social. Estas medidas acabaram caindo por terra em razão do longo período que estamos vivendo com este vírus que a cada dia vem matando mais de 1.000 pessoas no país. As medidas sanitárias, sendo respeitadas, não impedirão a convivência das crianças com ambos genitores separados, devendo assim ser mantido o regime de visitas já estabelecido anteriormente. 

Quais são as saídas mais indicadas nestes casos? O primeiro o cuidado e seguir as recomendações dos técnicos em saúde, em especial mas não limitado a higiene pessoal e de ambientes, uso de mascaras quando fora do ambiente residencial, controle de temperatura corporal entre outras. Não deve o genitor guardião impedir a convivência das crianças com o outro genitor. Em havendo esta prática deve ser adotado medidas de urgência requerendo ao poder judiciário uma decisão liminar para o exercício da convivência com o genitor afastado.

Se a decisão da guarda deixa de ser amistosa caso uma das partes não respeita as normas sanitárias, o que pode ser feito? Inicialmente deverá ser buscado guarida junto ao poder judiciário de tal forma que seja requerido por meio de antecipação de tutela, a manutenção da convivência bem como, que seja respeitado as normas sanitárias. Há caso concretos que estão se utilizando da situação da pandemia para afastar o outro genitor da convivência com a prole que entendo ser prática de atos de alienação parental. Expor as crianças a risco de contaminação também é uma atitude que deve ser levada muito a sério, afinal, pai e mãe devem zelar pela boa saúde de seus filhos. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em seu art. 232 prevê penalidades ao genitor que submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a riscos, bem como o código penal prevê em seu art. 136 o crime de maus tratos e ainda a carta magna em seu art. 227, todos versando sobre as responsabilidades dos genitores ou daqueles que possuem a guarda ou vigilância de menores. A atitude daquele guardião em expor crianças ou adolescentes em risco de saúde podem ser penalizados com detenção.

É possível ou provável que a parte que não respeita as medidas de sanitárias para o enfrentamento da Covid-19 perca guarda? Primeiro deve ser analisado os casos concretos, bem como, não requerer medidas extremas. As crianças ou adolescentes possuem o direito de convivência com seus genitores e parentes, como avós por exemplo. Certamente o genitor que estiver praticando desrespeito as medidas sanitárias devem ser advertidas pela autoridade judicial ou mesmo policial, para dar-lhe a chance de corrigir suas atitudes. Não havendo correção, daí sim, pode se requerer a inversão de guarda, onde o juiz determinará se deve ou não decidir pelo pedido. 

Outros fatores, como a presença de pessoas do grupo de risco no círculo de convívio, também pesam para a tomada de decisões afins? Todo o ambiente em que as crianças ou adolescentes convivem com seus parentes deve ser avaliado bem como as medidas sanitárias devem ser respeitadas. Em havendo descuido ou desrespeito das medidas de proteção sanitária, certamente colocará não somente as crianças ou adolescentes em risco como todos que conviverem com eles. Os estudos mostram que na sua grande maioria as crianças são assintomáticas, porém, são transmissoras da doença denominada COVID-19.

Uma decisão que reduza o nível de compartilhamento da guarda pode ser encarada como potencialmente desencadeadora da alienação parental? O uso da pandemia para impedir esta convivência pode ser interpretado como meio de afastar, o que é previsto como ato alienador na Lei da Alienação Parental (Lei 12.318/10). Vale ressaltar que a lei da alienação parental esta completando 10 anos e, o seu entendimento, inclusive jurisprudencialmente, vem amadurecendo ao longo dos anos, mesmo sendo um fato inédito a situação da pandemia pelo Coronavirus, rapidamente o judiciário bem como o Ministério Público, que atua nas ações que envolvem incapazes, responderam aos apelos realizados.
 

Dicas 

O que os pais podem fazer para manter um bom vínculo nesse período de distanciamento social? Veja algumas dicas da especialista.

- Tenha um relacionamento coparental saudável, sem brigas ou competições. Deixe isso evidente para o seu filho;

- Fortaleça o vínculo com ajuda da tecnologia. Combine horários para que possam interagir, até mesmo usando jogos de tabuleiro, porém no ambiente virtual;

- Mantenha um relacionamento sincero com os filhos, conversando sobre a impossibilidade de contato presencial e desmistificando qualquer fantasia relacionada ao abandono;

- Mantenham, se possível, ambientes parecidos, regras, deveres e rotina;

- Recorra a ajuda profissional, ou seja, psicoterapia, caso seja necessário;