Sociedade

Comportamento narcisista é cada vez mais comum e estimulado, dizem estudiosos

Para filósofo, supervalorização do desempenho individual se desdobrou em uma postura radicalmente autocentrada


Publicado em 27 de janeiro de 2021 | 03:00
 
 
 
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Resistente a aceitar a derrota nas urnas, o então presidente dos Estados Unidos Donald Trump não apenas acusou opositores de fraudes, embora jamais tenha apontado qualquer evidência disso, como também realizou discursos inflamados, que, para especialistas, foram combustível para que apoiadores realizassem atos classificados pela atual gestão como de terrorismo doméstico – como quando, no dia 6 de janeiro, grupos extremistas invadiram o Capitólio, prédio que serve como centro legislativo do Estado norte-americano, durante a cerimônia que reconheceria a vitória do democrata Joe Biden como o 46º chefe de Estado do país. Com isso, o evento, antes apenas protocolar, ganhou manchetes em todo o mundo, e Trump permaneceu no centro dos holofotes.

Meses antes, no final de agosto do ano passado, estreava o documentário “Unfit: The Psychology of Donald Trump”, que ouviu especialistas em saúde mental, historiadores e ex-assessores do então presidente, e que havia classificado o republicano como, possivelmente, possuidor de um transtorno de personalidade: o narcisismo. Entre as principais características do distúrbio estão o constante nutrir de ideias irreais de grandiosidade e uma profunda dificuldade do indivíduo em lidar com as contrariedades. Evidentemente, à luz dos episódios mais recentes, a tese levantada pela produção ganha força.

Mas, para além de algo pontual, ainda que Trump seja interpretado como uma personificação do narcisismo, pensadores contemporâneos indicam que traços desse comportamento – aqui entendidos para além do significado patológico – têm se tornando cada vez mais disseminados na sociedade. É o que diz, por exemplo, o sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett, que fala em uma “crise narcísica” alimentada, entre outros fatores, pela falta de relacionamentos sólidos uns com os outros. Nesse caso, ele avalia que, na sociedade moderna, experiências reais não são desejadas, mas apenas vivências que somente prolongam o eu no outro.

Em alguns aspectos, a análise encontra eco no conceito do modelo de sociedades líquidas, criado pelo filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que, de maneira resumida, diz respeito a uma época em que as relações sociais, econômicas e de produção são mais fugazes e maleáveis, sendo facilmente descartadas quando há percepção de que deixaram de gerar benefícios para o sujeito.

Essa lógica é também criticada pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, para quem se vive hoje sob o império do excesso de positividade. Isto é, estimuladas a pensar que o sucesso depende apenas de si, as pessoas têm se tornando radicalmente autocentradas, mas, diante da miragem narcísica de grandiosidade, metas pessoais passam a ser inalcançáveis. Assim, por se cobrarem uma produção cada vez maior, esses indivíduos nunca se sentem satisfeitos – “visto que, em última instância, (o narcisista na sociedade da performance) está concorrendo consigo mesmo, procura superar a si mesmo, até sucumbir”, avalia o ensaísta.

Origem. No campo da psicologia, o narcisismo foi descrito pela primeira vez por Sigmund Freud, no século XIX, e faz referência ao jovem e belo Narciso, personagem da mitologia grega que, em algumas narrativas, morre afogado depois de se apaixonar pela própria imagem refletida nas águas de um lago. 

Patologia. Já o transtorno de personalidade narcisista surge em 1980, sendo hoje uma categoria de patologias que integra o Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais (sigla em inglês: DSM). Estima-se que pessoas com diagnóstico clínico do distúrbio representem 1% da população, mas cresce a leitura de que esses traços de comportamento têm se tornado mais disseminados.

Epidemia. A pesquisadora e psicóloga norte-americana Jean Twenge, coautora do livro “The Narcissism Epidemic: Living in the Age of Entitlement”, conduz estudos sobre a incidência do problema na sociedade. A partir de inquéritos respondidos por estudantes nos Estados Unidos, ela constatou que esse comportamento vem crescendo desde os anos 80 na mesma proporção que a obesidade, alcançando, portanto, níveis epidemiológicos.

Exagero. Mas o psicólgo clínico Craig Malkin, autor da publicação “Repensando o Narcisismo”, acredita que seria um exagero falar em epidemia, pois as pesquisas realizadas até então estariam confundindo características mais relacionadas à autoestima e à autoconfiança com aspectos propriamente narcisistas.

Espelho, espelho meu…”

“Um pouco de vaidade não faz mal a ninguém, e é até necessário para reconhecermos nossas capacidades e enfrentarmos desafios”, pondera a psiquiatra e psicanalista Gilda Paoliello, indicando que traços de narcisismo são uma característica que grande parte das pessoas apresenta em maior ou menor grau. O problema é quando esses traços se tornam muito recorrentes, e o sujeito chega a se alienar, “acreditando que é mesmo especial, que merece sempre tratamento VIP e com tapete vermelho, em detrimento do prejuízo de outros”, sublinha.

Professora do Departamento de Saúde Mental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a psiquiatra Kelly Pereira Robis concorda. “Uma autoconfiança grande, em alguns contextos, é algo até positivo. Só vamos falar em um transtorno de personalidade narcisista quando se essa postura é persistente e desadaptativa. Isto é, quando falamos de um traço pessoal que tende a se repetir ao longo do tempo, independentemente do contexto sociocultural”, explica, completando que é marca desse distúrbio a sensação, percepção ou crença de ser melhor que os outros, e, muitas vezes, há sentimentos de irritabilidade diante da possibilidade de crítica. “Nesse caso, se sentem profundamente desrespeitadas e, geralmente, no lugar de corrigir o erro, passam a atacar o outro na tentativa de inferiorizá-lo”, detalha.

“Biologicamente, essa patologia é descrita a partir de falhas de compreensão do que se passa na cabeça do outro. Estudos mostraram, por exemplo, que pessoas com personalidade narcisista, quando se percebem observadas pelo outro, têm ativação de áreas cerebrais que vão dizer para elas que estão sendo admiradas, quando só estão sendo observadas. Logo, a pessoa acredita ser mais admirável do que é”, explica Kelly. Ela informa que fatores genéticos e vivências precoces, como traumas na infância, favorecem o desenvolvimento do distúrbio.

“Espelho, espelho meu, existe alguém mais bela que eu?”. A constante indagação da personagem Madrasta Má do popular conto de fadas da Branca de Neve é o retrato do sujeito narcísico. Resumindo: “São pessoas que repetidamente superestimam suas capacidades e exageram suas conquistas, tornando-se arrogantes e exploradoras, acreditando estar acima do bem e do mal. Estão sempre almejando o topo, lugar para o qual se consideram predestinadas”, ilustra Gilda, complementando que a experiência clínica mostra que todo traço muito exacerbado pretende esconder fragilidades. “No fundo, ele é um inseguro, extremamente vulnerável a críticas, tem uma autoimagem tão frágil que necessita ser recriada em suas fantasias o tempo todo, e nessas fantasias ele se perde, como Narciso se fundindo em sua própria imagem na água”, pontua.

Tratamento. Gilda Paoliello explica que o narcisista é egossintônico, ou seja, “enquanto suas defesas na fantasia funcionam bem, ele não sofre, mas, quando essas defesas são quebradas, ele se angustia muito, podendo, inclusive, caminhar para um autoextermínio”, diz. “Então, o tratamento deve ser cuidadoso, delicado, possibilitando uma desconstrução do mito e, simultaneamente, uma construção da vida real”, completa.

“Narciso acha feio o que não é espelho”

“Neste momento tão peculiar que vivemos atualmente, frente à pandemia, em que o isolamento nos é imposto como proteção a nós mesmos e aos outros, o narcisista é tipicamente aquele que promove festas, divulga viagens como um grande feito, ridiculariza os que se protegem com máscaras, pois se vê como invulnerável”, critica Gilda Paoliello, para quem as redes sociais se revelaram potentes aliadas para a proliferação do comportamento.

“O mundo virtual, onde tudo pode ser criado e exibido, é o meio ideal para que se mostrem como bem-sucedidas, exibindo suas pretensas qualidades e conquistas, reais ou imaginárias, e vendo-as referendadas, porque o narcisista não se contenta em achar que é o máximo: ele precisa ter isso confirmado pelo outro, rápida e constantemente”, examina. A psicanalista lembra que, apesar de desejarem e necessitarem da aprovação e da admiração alheia, esses indivíduos não têm a devida crítica sobre como são vistos sob a perspectiva dos outros.

Kelly Pereira Robis também avalia que a sociedade contemporânea favorece o florescimento de tais traços comportamentais. “Há, hoje, uma exacerbação desses traços de pessoas autocentradas, voltadas para si. Existem estudos científicos, principalmente da antropologia, que falam dessas influências culturais sobre o sujeito, como a transição de uma sociedade coletivista para uma sociedade individualista e com maior apelo por visibilidade”, informa.

Selfies: reflexo e estímulo. Um estudo chileno de 2016 buscou entender se os narcisistas fazem selfies com mais frequência para alimentar uma visão positiva de si ou se o ato de tirar selfies funcionaria como um estimulado do narcisismo nos usuários das redes sociais. “Os resultados, no entanto, são consistentes com ambas as hipóteses, sugerindo um efeito de autorreforço: enquanto os indivíduos narcisistas fazem selfies com mais frequência, esse aumento na produção dessas publicações amplia os níveis de narcisismo”, concluem os pesquisadores.

Gênero. Em 2014, a pesquisadora Emily Grijalva publicou uma revisão científica, em que analisou estudos publicados ao longo de 31 anos, e constatou que homens apresentam personalidade narcisista mais frequentemente que as mulheres.

Dica de filme:

Apesar do título, Patrick Bateman, personagem interpretado por Christian Bale e que protagoniza do longa “Piscopata Americano” (2000), da diretora Mary Harron, ostenta um comportamento de traços narcisistas muito bem delineados (e até exacerbados). Não por acaso, a produção é citada em artigos científicos que falam sobre o transtorno. No filme, o público é apresentado a um homem individualista e egocêntrico, que quer sempre estar acima de todos e ser reconhecido por isso.

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