Uma criança ganha um presente e, empolgada, trata de desfazer rapidamente o embrulho para revelar o que ele esconde. A realidade, porém, fica muito distante da expectativa. Sem disfarçar o descontentamento, o pequeno dispara: “Meias? Mas eu queria um brinquedo”. Os adultos ao redor riem sem jeito, os pais ficam constrangidos e a criança acaba sendo repreendida por ter sido honesta demais. A situação, muito comum, acaba deixando um alerta: os pequenos precisam aprender sobre a honestidade em um ambiente conflituoso já que ao mesmo tempo que aprendem que mentir é um comportamento errado, também acabam sendo repreendidas quando optam pela verdade nua e crua.
A questão é tão importante que acabou até mesmo motivando um estudo da Universidade do Estado do Texas, nos Estados Unidos. Publicada no Journal Of Moral Education, no último dia 11 de outubro, a pesquisa demonstrou que crianças que são muito honestas - dizendo coisas como “Eu não quero isso, é feio” - são julgadas de forma mais dura que aquelas que mentem ou contam meias verdades para serem educadas ou protegerem outras pessoas. Esses fatores podem acabar influenciando na própria opção por contar a verdade ou não.
Em um artigo divulgado pela instituição, a autora principal do estudo, Dra. Laure Brimbal, explicou que o estudo sugere que existe uma relação complicada com a verdade na infância, principalmente quando as crianças precisam aprender o que é socialmente aceitável, já que a honestidade brutal pode acabar chateando ou magoando outras pessoas, ao passo que a mentira pode acabar sendo uma saída menos complicada - e, ainda, sem repreensões.
É justamente por isso que, mesmo que elas sejam ensinadas que mentir é errado, elas acabam desenvolvendo a capacidade de contar mentiras desde muito cedo. Há, inclusive, um termo para designar as inverdades que são contadas para evitar situações desagradáveis, constrangimentos ou até mesmo para preservar vínculos afetivos: mentiras pró-sociais. Utilizadas também para atender às expectativas das outras pessoas, elas acabam se tornando uma habilidade social importante - inclusive para as crianças.
Exemplo que vem de casa
Mãe de quatro filhos, a doméstica Laila Rafaela, de 32 anos, admite que em algum momento já ensinou os filhos a não dizerem a verdade. “Não tem essa intenção de mentir, mas infelizmente, sem querer, a gente ensina para não ser desagradável com o outro”, explica. “Se o filho não foi à aula para passear, a gente pede para que ele fale que passou mal. São coisas mínimas”, exemplifica.
Ela reconhece ainda que embora a situação aconteça, ela tenta passar esse tipo de mensagem com pouca frequência. “Tento fazer o menos possível, mas às vezes dá uma escapulida”, confessa. Quando a mentira acaba escapando e sendo ensinada, Laila conta que a conversa acaba sendo o melhor remédio para resolver a situação.
A conversa também é a dica dada pela psicanalista e educadora parental Mary Elainne. Ela pontua que os pais podem se preparar e preparar os filhos para evitar situações desagradáveis explicando o contexto com antecedência. No caso de festas natalinas, por exemplo, os responsáveis podem conversar com as crianças antes, explicarem sobre a possibilidade de que irão ganhar um presente e pedirem para que elas sejam educadas e façam comentários sobre o agrado posteriormente, quando estiverem em casa. “Você deve explicar que diante da pessoa, a criança deve agradecer, porque ela foi gentil em dar o presente, independentemente se o pequeno gostou dele ou não. Ensinando dessa forma e repetindo isso também, os filhos vão percebendo, eles observam as nossas atitudes e absorvem com muita facilidade”, afirma.
Caso aconteça de a criança acabar dizendo que não gostou do agrado e o clima fique constrangedor, ela ressalta que é importante que os pais peçam desculpa pela indelicadeza, mas que não repreendem os filhos no mesmo momento e que não façam isso perto de outras pessoas. “Em um momento sozinho com o filho, você ensina, explica que a atitude não foi gentil e nem educada”.
Outra dica dada por ela é que as situações sejam encenadas entre pais e filhos. Ocorreu algo indelicado? Ela orienta que o momento seja refeito com as crianças para que elas se lembrem do ensinamento e não repitam a atitude. “Castigos não vão adiantar, em nenhum caso eles adiantam. Receber uma bronca, um tapa, ser envergonhado na frente das pessoas não resolve. Muito pelo contrário, leva a criança a ter comportamentos ainda mais desafiadores.Depois de ser envergonhada, ela terá sentimentos de revolta, se sentirá injustiçada”.
Segundo a psicanalista, é importante também que os adultos entendam que as crianças precisam ser livres. “Elas não precisam agradar nem fazer o que os adultos querem em todo o momento, ela precisa poder demonstrar quem ela é de verdade para que os pais tenham a oportunidade de tolher as más inclinações e ensinar as virtudes adequadas que vão organizar aquela personalidade juntamente com o temperamento da criança”.
A mentira faz parte da infância
Psiquiatra da infância e adolescência, a médica Luciana Nogueira de Carvalho destaca também que é preciso ter um olhar específico para a mentira na infância. “Ela não tem a conotação de um engano proposital, não devemos pensar nela como um ato de ludibriar o outro propositalmente. Muitas vezes a criança mente para não ser punida pelos pais e para não se envolver em conflitos com os colegas”, explica.
Em termos clínicos, ela pontua que a mentira também pode indicar algumas questões tanto sobre as crianças quanto sobre a própria criação dela. “A mentira, na clínica da infância, é um sinal. Tanto poderá se tratar de crianças que são excessivamente punidas e por isso não falam a verdade, como pode nos sinalizar para os Transtornos de Conduta em que a mentira faz parte de um quadro sintomático de transgressão”.
Por isso é importante que os pais estejam sempre atentos ao que os filhos falam, às situações em que as mentiras ocorrem, às motivações e à frequência com que isso acontece. “A mensagem é que os pais tentem ensinar os filhos a se colocarem verdadeiramente em todos os seus atos, o que não significa não omitir determinadas opiniões em alguns momentos. Parafraseando Caetano Veloso, sugiro aos pais atenção redobrada quando perceberem filhos que têm ‘o dom de iludir’, finaliza.