O grupo havia acabado de entrar em um chalé quando uma das viajantes convocou os demais a apreciar a vista da janela, que dava para o mar da paradisíaca Caraíva, no sul da Bahia. Rápido, o ator Johnny Ferreira foi o primeiro a chegar, subindo os lances da pequena escada que dava acesso à cama suspensa e alcançando o mirador já com o smartphone em punho e a câmera devidamente ligada. A paisagem ele viu pelo visor do dispositivo pelo qual, antes mesmo de apreciar aquele momento, fez o registro da cena. No decorrer dos dias, cada vez mais, o mineiro trocava a exuberante praia, com rarefeito sinal de internet e pouca disponibilidade de redes Wi-Fi, pela mais recente série disponível no catálogo da plataforma de streaming Netflix – e, por isso, passou mais horas no quarto, onde dispunha de melhor qualidade de conexão, do que em passeios turísticos.
Não foi a primeira vez, mas foi certamente naquela viagem – realizada no início deste ano, antes que a pandemia da Covid-19 impedisse a realização de itinerários turísticos – que Ferreira foi posto de forma mais clara ante o que hoje entende como uma dependência tecnológica. Longe do aparelho celular, sente-se ansioso e deslocado.
Definitivamente, ele não é uma exceção: de acordo com pesquisa do Google, 73% dos brasileiros que têm smartphones não saem de casa sem seus dispositivos. Alguns podem apresentar até mesmo quadros de nomofobia, um distúrbio relacionado ao medo irracional de estar sem celular ou aparelhos eletrônicos no geral. “Se o telefone descarrega e estou viajando ou mesmo se estou em casa, sinto muita ansiedade e me sinto alheio, sem lugar”, reconhece Ferreira.
O ator conta que, recentemente, esqueceu o carregador no escritório em que trabalha. A primeira reação foi pensar em comprar um novo, ainda que o acessório custasse caro. “Não tinha dinheiro para comprar e por isso tinha que ficar pegando emprestado, mas, como acho chato ficar pedindo, fiquei dois dias precisando racionar o uso”, conta, detalhando que experimentou momentos desafiantes e, para ele, que é fumante, sintomas semelhantes aos da abstinência de nicotina.
A comparação é coerente ao que indicam recentes estudos, que apontam que o vício em tecnologia pode ser bastante similar à dependência de drogas químicas – como o cigarro, o álcool e a cocaína. Razão pela qual alguns pesquisadores acreditam que o uso exacerbado dessas ferramentas pode até mesmo danificar a extremidade dos neurônios. Em 2017, estudiosos da Universidade da Coreia em Seul investigaram como essa dependência se daria do ponto de vista da química cerebral em adolescentes. Entre os resultados, apontaram que, comparados aos demais, aqueles que apresentaram sinais de vício tinham níveis mais significativos de depressão, ansiedade, insônia e impulsividade. Mas o coordenador da pesquisa, o neurorradiologista Hyung Suk Seo, sublinha que são necessários mais estudos antes de se pensar em aplicações clínicas da descoberta.
Já um estudo norte-americano publicado no periódico científico “Preventive Medicine Reports”, em 2018, indica que até mesmo a curiosidade de aprender coisas novas pode ser reduzida. No caso daqueles que usam as telas multimídia por mais de sete horas por dia, 22,6% dos adolescentes demonstravam desinteresse – contra 9% dos que usavam por uma hora por dia. Além disso, a pesquisa aponta que aqueles que ficam mais tempo usando essas ferramentas tecnológicas teriam o dobro de chance de demonstrarem sinais de impaciência e de serem diagnosticados com quadros de depressão.
Criar rotina e se comprometer a cumpri-la é fundamental para superar dependência
“O nosso mundo, hoje, tem sido experimentado por meio da internet e, sobretudo, das redes sociais”, avalia Ellen Moronte, psicóloga clínica especializada em saúde mental. Uma observação que encontra eco na história que abre esta reportagem, quando Johnny Ferreira recorre a um filtro virtual para visualizar uma cena da dimensão do presencial.
A estudiosa ressalta que não se deve fazer um juízo de valor sobre a forma como cada um lida com experiências que são postas para si. Todavia, ela não tem dúvidas de que o uso exacerbado da tecnologia possa gerar dependência. A percepção de que a interação com o universo virtual estaria sendo prejudicial, acrescenta ela, é muito pessoal: é o próprio indivíduo que se, em função do excesso de uso, o seu bem-estar está sendo comprometido.
Ellen pontua que, de sua experiência clínica e de leituras que faz sobre o tema, são sintomas de dependência a falta de sono, a irritabilidade, a produtividade baixa e sintomas depressivos, como a falta de ânimo. “Estes sinais servem de alerta para que o sujeito busque ajuda, pois pode estar se tornando um vício o uso desses recursos que, de fato, são muito bons, sendo espaço ilimitado para a busca de conhecimento, de informação e de entretenimento”, observa.
Ela também acredita que possa haver reflexos e distorções na perceção da autoimagem. “O usuário vai selecionar e editar o que quer mostrar de si e, a partir dessa experiência, pode começar a calibrar sua identidade em função do retorno que obtêm – como likes e visualizações – ignorando que existem mais dimensões além daquela que aparece nas redes”, examina.
Superar o uso abusivo da tecnologia exige esforço e, em alguns casos, ajuda profissional. Um passo importante é reconhecer que o problema existe e, então, criar mecanismos de controle.
“O que pode ajudar a limitar o tempo no celular ou reduzir os efeitos dessa dependência é o ato de estabelecer uma rotina e o esforço consciente para cumpri-la. Dessa maneira, a pessoa pode organizar seus horários, delimitando o tempo que vai se dedicar a outras tarefas desvinculadas da tecnologia – que vão ser muito particulares: alguns podem, por exemplo, se dedicar a desenvolver receitas e apurar sua experiência ao cozinhar, outros podem se apegar a trabalhos manuais, atividades que, de maneira geral, têm viés terapêutico”, diz.
Ferreira, aliás, entende que, sim, precisa elaborar maneiras de se desvencilhar do que já considera como um vício, mas, principalmente em função da pandemia, que limitou sobremaneira experiências para além das virtuais, ainda não consegue criar maneiras para desapegar do smartphone.
Hoje, em comparação à média nacional, ele passa mais que o dobro de tempo diante da tela: de acordo com relatório Estado de Serviços Móveis, elaborado pela consultoria especializada em dados sobre aplicativos para dispositivos móveis App Annie, os brasileiros, em 2018, passaram mais de três horas por dia usando o celular, sendo a quinta população no ranking global de tempo gasto com esse aparelho.
“O pior de tudo é que a gente está ciente de que estabelecemos (com a tecnologia) uma relação que não é saudável. A gente sabe que poderia estar aproveitando mais, se dedicando a outras coisas. Sei que (superar a dependência) vai ser um processo que vai exigir paciência e força de vontade”, conclui Ferreira.
Aplicativos são espécies de caça-níqueis da atenção, diz estudiosa
Essa problemática relação de dependência se dá de forma deliberada. É o que garante a jornalista espanhola Marta Peirano, autora do livro “El Enemigo Conoce el Sistema” (“O inimigo conhece o sistema”, em tradução livre). Uma das mais ferrenhas críticas do ecossistema das redes sociais e dos aplicativos para smartphones, mecanismos através dos quais acessamos a internet, a estudiosa acredita que há um sequestro – pelo que ela chama de “economia da atenção” – de nossa energia, de nossas horas de sono e até da possibilidade de amar.
“Não somos viciados em tecnologia, somos viciados em injeções de dopamina que certas tecnologias incluíram em suas plataformas. Isso não é por acaso, é deliberado”, disse em entrevista à BBC, canal público de notícias do Reino Unido.
“As redes sociais são como máquinas caça-níqueis, quantificadas na forma de curtidas, corações, quantas pessoas viram seu post. E isso gera um vício especial, porque se trata do que a sua comunidade diz – se o aceita, se o valoriza. Quando essa aceitação, que é completamente ilusória, entra em sua vida, você fica viciado, porque somos condicionados a querer ser parte do grupo”, avalia Marta, que estuda as tecnologias desde os anos 90.
O mestrando em ciência da computação Lucas Lagôa, 24, corrobora com a análise. Ele aponta que alguns aplicativos, de fato, são criados de forma que o usuário gaste o maior tempo possível neles. E o debate sobre uma conduta ética que norteie o desenvolvimento dessas ferramentas parece ainda muito incipiente, como o estudioso indica, salientando que tem ouvido poucos debates sobre o tema.
Embora reconheça que convive com pessoas que demonstram sinais de ansiedade quando longe de aparatos tecnológicos e com outras que têm dificuldade de socialização fora do ambiente virtual, Lagôa diz que não parecem graves. Ele mesmo chega a passar 14 horas em frente às telas, considerando período de trabalho e de lazer. Apesar do volume de tempo gasto, não se sente dependente e consegue ficar bem mesmo quando desconectado.
Crianças são especialmente vulneráveis às armadilhas viciantes da dispositivos eletrônicos
Também na entrevista à emissora britânica, Marta Peirano foi incisiva: os dispositivos eletrônicos são especialmente viciantes para crianças. De acordo com a estudiosa, os pequenos tendem a criar dependência mais rapidamente. “E não é que elas não tenham força de vontade, é que elas nem entendem por que isso pode ser ruim”, disse.
“Não deixamos nossos filhos beberem Coca-Cola e comer balas porque sabemos que o açúcar é prejudicial; mas damos a eles telas para serem entretidos, porque dessa forma não precisamos interagir com eles”, asseverou a jornalista.
O impacto das mídias digitais para a infância, aliás, levou a Academia Americana de Pediatria (AAP) a atualizar, em 2016, suas recomendações sobre o tempo que crianças devem permanecer expostas às telas de TVs, smartphones e tablets.
Agora, a orientação é que, até 18 meses, a criança não seja exposta às telas em nenhum momento do dia. Entre 2 e 5 anos, o limite é de uma hora por dia, sob mediação de um tutor. A programação deve ser de qualidade e apropriada à idade. Todavia, a entidade recomenda que sejam priorizadas atividades e brincadeiras criativas e que promovam interação, dispensando eletrônicos.
A partir dos 6 anos, sempre monitorando o uso dos dispositivos pelas crianças, os pais devem determinar a quantidade de tempo gasto diariamente.