Após uma sequência de acontecimentos, o comportamento da dançarina e influenciadora Vanessa Lopes no “Big Brother Brasil (BBB) 24” gerou repercussão e até preocupação dentro e fora da casa. A integrante do Camarote – como são chamados os participantes famosos, convidados para o reality – chegou a manifestar pensamentos paranoicos e desconexos, como se todos estivessem contra ela. Em alguns momentos, deu a entender que os do grupo Pipoca – nome dado aos anônimos da edição – seriam atores que a estariam ludibriando. Também acusou MC Bin Laden, até então seu aliado no jogo, de só ter se aproximado dela com a intenção de lançar uma música. Sobrou até para Ludmilla, que fez um show na casa, ocasião em que uma de suas músicas foi interpretada pela sister como uma mensagem cifrada para ela.
As atitudes geraram mal-estar, culminando na desistência de Vanessa Lopes, que optou por abandonar a disputa – decisão que também repercutiu dentro e fora da casa. “Apertar o botão é puxar o gatilho na vida real, desistir do ‘BBB’ é desistir da própria vida no mundo real!”, protestou, lacônica, uma espectadora do programa na rede social X, antigo Twitter. O comentário, que viralizou, embora carregado de boa intenção, tentando recomendar ao público que evitasse fazer julgamentos sobre a tiktoker, expõe uma visão estigmatizada do ato de desistir, que, nesse caso, aparece associado a uma atitude extrema e irreversível, que, portanto, deveria ser evitada a qualquer custo. Aliás, entre os participantes do reality, a desistência parece igualmente malvista. Não por outro motivo, houve grande pressão para que a desistência não acontecesse.
No “BBB”, de fato, sair da casa pode implicar punição, como a perda do direito a um cachê que a Globo paga aos ex-participantes e até a retirada da foto daquela pessoa da abertura do programa. A regra, contudo, não impediu que pessoas em sofrimento na casa optassem por desistir do jogo em nome do próprio bem-estar – algo que aconteceu nas três últimas edições do reality, com as saídas de Lucas Penteado, em 2021, Thiago Abravanel, em 2022, e Bruno Gaga, no ano passado. E, para além do universo do entretenimento, no mundo dos esportes, figuras como a ginasta Simone Biles, o jogador de futebol Adriano Imperador e o piloto de F1 Nico Rosberg já pautaram a mídia e o debate público ao “desistirem” de competições – ou até da carreira – em benefício da própria saúde mental.
São decisões que vão na contramão da tão difundida crença de que desistir é, necessariamente, algo ruim, enquanto a persistência e a resiliência seriam uma chave mestra para o sucesso, necessárias em todos os cenários e contextos. Um ponto de vista que é rejeitado pelo escritor e pesquisador Alexandre Gossn, doutorando em estudos contemporâneos pelo Instituto de Investigação Interdisciplinar pela Universidade de Coimbra, em Portugal.
“Desistir pode ser muito saudável. Pode ser fruto de amadurecimento, de percepção de que o que se desejou, no fundo, não é o que se queria, ou de uma melhor avaliação do preço para se conseguir algo”, avalia, citando razões que podem levar a essa escolha. “Às vezes se desiste porque se percebe que os resultados almejados são impossíveis de serem atingidos, enquanto noutras se desiste porque se nota que, mesmo que o êxito seja possível, o preço a ser pago pelo sucesso é demasiado alto. Temos inúmeros casos assim atualmente: nos negócios, na arte, no esporte e até nas universidades”, diz, antes de ponderar que não há nada de errado em desejar o sucesso. “A deformidade moral e psíquica é desejar o sucesso a qualquer preço, inclusive o da nossa saúde mental”, conclui o criador da newsletter “Um Olhar das Ciências Sociais”.
Exaltação e desprezo
Alexandre Gossn reflete que a perseverança é, sem dúvida, um predicado, uma qualidade positiva. “Não existe êxito sem perseverança, e as biografias daqueles que logram grandes feitos está recheada de derrotas antes de se atingir o objetivo”, lembra. “Mas é importante distinguir a perseverança da teimosia. É preciso se investir na insistência e resistência em objetivos palpáveis, atingíveis e saudáveis, seja para nós, seja para as demais pessoas. Persistir por persistir pode representar a erosão de relações familiares e profissionais e a destruição da própria saúde”, examina, acrescentando ser necessário também se refletir sobre o projeto e a perseverança, especialmente em época de redes sociais: “Por que estamos nos debruçando sobre ele? A quem servirá o êxito? O que é sucesso para mim, para você e para nós? Erguer um prêmio, exibir uma conquista pelo que ela significa para mim ou pelo que os demais vão achar? E há mais. Às vezes, a desistência é a porta que se abre a um novo projeto. É preciso terminar ou desistir de algo que não faz mais sentido para recomeçar e, quem sabe, conseguir algo que conversa melhor com o ser que passamos a ser”.
Por outro lado, se a perseverança sempre foi tratada como uma virtude, o ato de desistir foi malvisto. “Na pré-história, a desistência, ou o indivíduo sem fibra, poderia condenar a si próprio e ao seu grupo a serem erradicados por predadores ou terem menos chances adaptativas a mudanças climáticas, longas jornadas migratórias etc. Durante a Antiguidade, até o final da Idade Média, esse foco mudou: a perseverança estava mais associada a resistir e aceitar a vontade de Deus. A aceitação era uma qualidade valiosa nesse período”, situa.
“Com o advento do capitalismo e da crença de que ‘tudo posso se tiver as ferramentas certas’ (estudar, trabalhar muito e, posteriormente, ter o ‘mindset’, comprar os cursos corretos etc.), o sucesso aqui e agora tomou o lugar do paraíso, do céu, de uma boa vida eterna se nos pautássemos pela palavra e vontade de Deus. Logo, desistir se tornou uma vergonha, porque, se o sucesso só depende de mim, ao desistir, estou me declarando publicamente incapaz. Não há espaço na crença moderna para concebermos que nem sempre alcançamos o que desejamos, seja porque podemos não ser mesmo aptos, seja porque faltou sorte, seja porque mudamos de objetivos, ou porque descobrimos que o custo para obter esse ‘sucesso’ é alto demais”, diz, completando que “a obrigação de sucesso é uma forma de oprimir, discreta e muito eficaz”.
Ato de coragem
Todo esse contexto, na visão de Alexandre Gossn, faz que o ato de desistir, em vez de representar covardia, exija sabedoria e coragem. “Atualmente, exige mais coragem do que em qualquer outro período da história, porque, além da sensação íntima de estar remando contra a maré do que a sociedade tem pregado, você ainda sabe que será julgado pelas pessoas próximas e, se for uma desistência pública, sabe que será execrado e até mesmo usado como símbolo de fracasso – o que é uma tremenda mentira. Desistir pode ser como baixar as velas, conferir a bússola, e não necessariamente abandonar a navegação, mas sim rumar a nau para um destino mais saudável. Você pode estar desistindo de um trabalho que odeia, de um hábito que lhe faz mal, de uma relação tóxica ou até de uma ‘egotrip’”, cita.
Mas o pesquisador ressalva que a desistência nem sempre representa uma atitude autoconsciente. “Aquela pessoa criativa, que faz muitos planos, faz bem em selecionar os que deseja mais e os que são mais exequíveis. Ao renunciar aos planos que não deseja muito ou que são irreais, ela está agindo com sabedoria. Já no caso de quem desiste porque não se preparou adequadamente, não se planejou ou tem o hábito de começar muitas coisas e nunca as terminar, o ato pode, na verdade, estar associado à imaturidade”, comenta, asseverando que as pessoas maduras sabem que o prazer de se alcançar um objetivo saudável é ainda maior que o de apenas desejar essa meta.
“Por puro empirismo, creio que as pessoas que desistem mais facilmente não o fazem necessariamente por falta de fibra, mas sim porque, em geral, são mais imaturas e inocentes quando modulam as suas expectativas. Geralmente, as pessoas emocionalmente mais maduras anteveem com mais realismo o custo dos seus projetos – o custo existencial, de saúde emocional, de tempo, de convívio com a família – e, assim, decidem com mais embasamento se tentarão ou não. Mas isso não significa que não possam desistir, apenas que podem ser um pouco mais conscientes na aceitação de um desafio e até na desistência deste. Se resistir é importante, saber quando desistir é necessário”, indica.