Irmão camarada

No Dia do Amigo, demonstrações de afeto não faltam

Músicos como Gustavito e Tico Santa Cruz, bem como a atriz Bia França, celebram essa parceria de alma


Publicado em 20 de julho de 2020 | 05:56
 
 
 
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"Presença “pra se guardar debaixo de sete chaves”. Companheiro cuja “palavra de força, de fé e de carinho” fornece a certeza de que o outro nunca esteve sozinho. Aquele, “cujo apreço não tem preço”.  Bem, não é preciso ser um profundo conhecedor de MPB para ligar essas frases a músicas que foram compostas para celebrar uma das relações mais importantes na vida de qualquer ser humano: a amizade. Milton Nascimento (“Canção da América”), Roberto Carlos (“Amigo”) e o grupo MPB-4 (“Amigo É pra Essas Coisas”) interpretaram, em épocas distintas, as canções citadas, três entre as várias que colocam em relevo a figura do amigo. Uma presença que merece ser reverenciada com especial atenção hoje, quando se comemora o Dia do Amigo.
 
Antes de seguir em frente, um adendo. No dia 20 de julho, a data é comemorada no Brasil, Uruguai, Argentina e Moçambique, e corresponde também ao dia da chegada do homem à Lua, em 1969. No entanto, em 2011, a Assembleia Geral das Nações Unidas propôs um outro dia, também em julho: convidou seus países membros para que o Dia Internacional da Amizade fosse celebrado no dia 30. E não se espante se descobrir, no Google, outros marcos de celebração da amizade mundo afora. O que vale, claro, é a intenção. E sim, no caso do 20 de julho, a coincidência com a chegada do homem à Lua não é aleatória. O médico argentino Enrique Ernesto Febbraro, que idealizou a efeméride, considerava que o feito “demonstra que, se o homem se unir com seus semelhantes, não há objetivos impossíveis”.
 
Para a psicóloga Lilian Amaral, a amizade é a relação que mais se aproxima do amor familiar e do amor romântico, em termos de troca e intimidade. “No entanto, sem o peso, as responsabilidades e cobranças que esses dois outros afetos muitas vezes podem trazer. A amizade, podemos dizer que é um amor mais leve – ou, como disse, Mario Quintana, ‘um amor que nunca morre’”. 
 
A atriz Beatriz França viveu essa máxima na própria pele. Há quase oito anos, ela perdeu a amiga (também atriz) Cecília Bizzotto, assassinada durante um roubo em sua residência, num caso que chocou a capital mineira. “Ela faz falta pra caramba. Valeu muito a pena na minha vida. Vale, mesmo não estando aqui”, diz uma emocionada Bia, que há dois anos fez a última apresentação da peça “Talvez Eu Me Despeça”, homenagem a Cecília. “A nossa amizade nasceu do nosso encontro no teatro, de jovens com muitos ideais. Daquela relação diária, de ensaios, de uma intimidade que vai surgindo do toque e do olhar, que o teatro permite acessar. Ela fazia parte da minha vida como uma irmã”, rememora Bia, que, com o choque brutal da perda, resolveu fazer a montagem. “Foi uma forma de preencher essa ausência, continuar o que estava fazendo com ela, só que, agora, sozinha – e era assim que eu estava me sentindo. Por isso só fazia sentido um solo”. 
 
A montagem acabou sendo um divisor de águas. “Cecília foi uma pessoa fundamental na minha vida, e esse processo (da peça) foi importante para viver o luto. Por outro lado, me trouxe um presente de vida, uma linda amizade com o (diretor e dramaturgo) Daniel Toledo”. 
 
“Acho que o amigo é um dos seres mais importantes da vida do homem”, sentencia o cantor e compositor Charles Theone, que, em parceria com Julio Moura, compôs a música “Brodagem”. “Um amigo é um ser muito especial, a gente conta nos dedos quem são os verdadeiros amigos, e é um ser que a gente escolhe para ser irmão de coração. É uma relação de reciprocidade, amizade é algo de muita afinidade, confiança e respeito, uma consideração ampla, sem rivalidade alguma. Sendo assim, não é fácil! Imagina? Por isso temos poucos amigos. Mas é muito bacana poder contar com alguém, saber que tem alguém ali para o que der e vier”, enfatiza. "Viva os amigos, viva a amizade".
 
Outro a compor uma música sobre o tema – “Lembrete” – foi o cantor e compositor mineiro Gustavito, no caso, junto a Luiz Gabriel Lopes e Chicó do Céu. “É como se fosse uma mensagem de cada um de nós para os outros amigos que temos. Neste caso, o dos três ocmpositores da música, nós temos esse caminho musical em comum, mas para cada pessoa, dentro do seu caminho, ela sempre vai encontrar outras para compartilhar visões de mundo, interesses, atividades. Penso que é através dos amigos que a gente se reconhece no mundo, vê que não está sozinho, que há pessoas parecidas com você. Sem amizade, a vida humana perde totalmente o sentido. Dizem que os amigos são a família que a gente escolhe, e é isso, algo de alma mesmo, que a gente reconhece através do brilho no olhar”.
 
Lilian confirma que a capacidade de estabelecer vínculos honestos e duradouros para além do ambiente familiar é, sim, um regulador da saúde mental, por trazer amadurecimento, diversidade de visão de mundo, longevidade, otimismo, autoestima equilibrada, regulação dos afetos, diminuição do estresse, desenvolvimento de empatia e mais prazer em viver. 
 
A jornalista Fernanda Castro que o diga. Tanto que, nas redes sociais, ela costuma celebrar com constância a amizade com a sua colega de faculdade, Ana Cláudia. "A relação da gente já atingiu a maturidade (risos). Fomos colegas do curso de jornalismo no início dos anos de 1990, e, embora ela tenha morado em outra cidade por um longo tempo, sempre mantivemos contato. Em 2018, ela voltou para BH, e foi um período em que passei por um problema pessoal que acabou resultando em um acidente de carro. Fiquei quatro meses  sem poder me locomover por causa de duas fraturas, e essa situação me  deixou  muito fragilizada física e emocionalmente", rememora ela. 
 
Foi nesse momento que Aninha, como Fernanda chama a amiga, chegou junto. Uma tarde, Fernanda teve uma espécie de crise de pânico, e ligou para a amiga na mesma hora. Ana  estava indo para o trabalho, mas avisou que passaria na casa de Fernanda antes. E assim o fez. "Ela veio, me colocou no carro, me ouviu, deu uma volta no quarteirão, me esperou acalmar. Antes de ir embora, me deu uma medalhinha que tinha sido de sua avó para me proteger e a deixou comigo até que eu me recuperasse. Sempre ligava e me elogiava, levantava minha estima, me dizia que sairíamos para sambar quando eu estivesse curada.... Além disso, um dia me levou para o cinema no shopping. Tive que usar cadeira de rodas e ela me conduziu pra cima e pra baixo, na maior paciência e empenho para colorir um dos meus dias que estavam muito cinzas. Então, quando penso em um amigo do peito, penso nela.  Aninha nunca soltou a minha mão - e nunca vou me esquecer disso!".
 
No quesito diversidade de visão de mundo, também citado pela psicóloga Lilian, o músico Tico Santa Cruz sabe bem o valor da amizade. Foi aos 12 anos que ele conheceu Wagner Alexandrino. Mas o começo da relação foi marcado por um episódio absolutamente infeliz. Num jogo de futebol, o desaparecimento da bola levou Tico a suspeitar do colega. “Foi uma atitude racista”, reconhece ele, que, naquela faixa etária, não tinha repertório para entender mazelas entranhadas na sociedade brasileira, além de ter tido uma educação com parâmetros que hoje vê como “reprováveis”. Diante da acusação infundada (Tico achou a bola logo depois), deu-se uma briga entre os dois, mas, na sequência, uma amizade para a vida. “Ainda na adolescência, meus pais se separaram, minha família se desintegrou, e fui praticamente adotado pela família dele. Seus pais me levavam na escola, cuidavam de mim, das minhas coisas. Foi nesse período que comecei a perceber a realidade da vida de um negro no Brasil. Ao irmos para festas, por exemplo, ele era sempre revistado”, indigna-se.
 
Passados tantos anos (Tico Santa Cruz tem, hoje, 42), o artista entende que, se atualmente tem uma percepção mais humanista do mundo, “resultante da desconstrução de questões importantes, seja no racismo ou no machismo, ou em qualquer atitude preconceituosa e opressora”, foi porque aprendeu com ele. Não por outro motivo, o Detonautas, grupo de Tico, lançou “Canção do Amigo”. “Quis deixar marcada para sempre essa colaboração fundamental dele na minha percepção de vida. Me orgulho de tê-lo como um irmão”, saúda.
 
Outra música que celebra a amizade foi feita por Gabriel, O Pensador, e Gustavo Macacko. Em 2014, um grande amigo deles sofreu um acidente vascular e ficou em coma. Até então, os três faziam muitos shows juntos."E se divertia muito. Até que ele foi empossado secretário de Cultura de Vitória (ES) e, durante uma reunião, passou mal". Levado para exame, foi descoberto um problema na aorta, quando foi submetido a uma cirurgia, que, lembra Macacko, inclusive deu certo. "Mas na hora que ele acorda dos sedativos, do coma induzido, ele levou um susto e arrancou os aparelhos, entrando praticamente num estado vegetativo no qual se encontra até hoje. Era um cara muito querido da classe artística, fizeram até alguns eventos para arrecadar dinheiro para o tratamento. E na sequência de um dos eventos, eu e Gabriel (o Pensador), a gente se encontrou e combinou de fazer uma música ("Passaporte para a Fé", contando nossa história de amizade e mandando um recado, acreditando no retorno dele e também na presença dele ali, mesmo naquele estado - inclusive, no clipe tem imagens do Alexandre". 
 
A música foi lançada em 2018 no Spotify,  parte da renda foi doada para o tratamento do Alexandre. "É uma música muita querida, ele, um cara muito querido, uma história muito bonita. E até hoje acontece o festival Viva Alex, para arrecadar fundos para o tratamento dela. Essa música, pois, simboliza amizade de nós três. Foi feita em homenagem a ele e  tem esse caráter colaborativo, de tentar ajudar a família e também mandar um recado de fé", prossegue o artista.
 
Outro detalhe que ele ressalta é que a escrita de "Passaporte para a Fé", é que, mesmo tendo sido feita no calor da sequência do evento citado, a letra não foi alterada até a gravação. "É aquela exata música. E eu usei uns trechos de nomes de canções do próprio Alexandre (que foi da banda Manimal), como 'Everest', por exemplo, para explicitar a fé de acreditar que ele ainda está entre a gente".
 
E quando, como na música dos Tribalistas (na música “Velha Infância”), o melhor amigo é o seu amor? Foi o que descobriu a estilista e professora Ananda Sette há dois anos. “À época, estava com muita dificuldade em expressar meus sentimentos, vivia inquieta, por vezes mal-humorada. Um dia, ele me chamou e disse: ‘Olha, sou seu amigo, estou do seu lado’. Aquilo me desmontou. A atitude bateu fundo, e enxerguei que podia de fato contar com ele, com quem estou há 15 anos”. Ananda, vale lembrar, ministra oficinas de costura para adultos, crianças e arte-educadores. Uma de suas peças que mais repercutem, elaborada na técnica do macramê, é a pulseira da amizade, cuja ideia surgiu em meio a uma aula, quando os alunos de uma turma estavam se despedindo da escola e foram incentivados a confeccionar a peça com as cores do que desejavam aos colegas: itens como saúde, coragem... e a própria manutenção da amizade.
 
Amizade tóxica. Como toda relação, uma amizade pode também ser tóxica. Quem não se lembra, por exemplo, das agruras vividas por Allison (Bridget Fonda) ao iniciar uma suposta amizade com Hedra (Jennifer Jason Leigh) em “Mulher, Solteira, Procura...”? Claro, nesse caso, a toxicidade foi levada ao extremo, descambando para o terror. Mas o que dizer de alguns momentos da amizade entre Lila e Lenu no fenômeno da tetralogia napolitana “A Amiga Genial”, da italiana Elena Ferrante? Quantas vezes, no curso da vida das duas personagens, as atitudes de Lila levaram Lenu às lágrimas? 
 
Para Lilian Amaral, o principal sinal de que amizade pode estar sendo tóxica é a sensação da falta de espontaneidade em uma das partes. “Se você passa a se sentir tolhido na presença do amigo, tem medo do julgamento, de preconceito, de críticas ou mesmo da indiferença, quando, em vez de se sentir feliz, querido, valorizado e fortalecido, passa a estar triste e a questionar suas próprias qualidades sempre que está em contato com o ‘amigo’, se a relação passa a ter parâmetros de serventia, e não de troca, o alerta deve ser ligado imediatamente”, alerta.
 
A psicóloga lista uma série de atitudes que podem caracterizar uma amizade tóxica. “Amigos tóxicos são aqueles que sempre têm razão, nunca elogiam, infringem culpa, são interesseiros, podem expor o outro ao ridículo, são competitivos, tentam diminuir as qualidades, conquistas e até problemas do outro”. Caso o seu amigo se enquadre nesse perfil, Lilian entende que o primeiro passo é uma conversa sincera, para ver se, com afeto, é possível restabelecer os parâmetros saudáveis de uma amizade. “Caso isso não aconteça, o melhor caminho é  abandonar a relação, porque a amizade já deixou de existir faz tempo”, entende ela, acrescentando que amizades (e outras relações) tóxicas minam a energia, “apagam o nosso brilho, diminuem a autoestima e, por fim, podem até nos adoecer”.
 
Confira, a seguir, as letras de algumas músicas citadas na matéria
 
"Passaporte para a Fé"
(Gabriel Pensador/Gustavo Macacko)
Muitos dizem que o mundo é dos espertos/Que não dá pra ninguém dormir no ponto
E com um olho fechado e outro aberto/Acordamos já prontos pro confronto
Frente a frente com o inimigo eu me vi/E era eu mesmo no espelho a refletir
Nessa guerra entre o ego e o amor A diferença está no preço ou no valor? 
Muitos sonham, alguns fazem, poucos vivem/Muitos gritam, alguns falam, poucos dizem 
Mas só quando fica tudo por um triz/É que a gente de repente entende o que o silencio diz.
É... cê pensa que sabe o que você quer /Mas quem você pensa que você é? Seu erro pode ser um golpe de sorte/E o medo pode ser seu passaporte para a fé!
Não tente ser o que você não é Esteja aqui agora onde estiver 
A vida no seu peito bate forte e a vontade de viver é o passaporte para a fé!/Só quem sobe o Everest/Desce e volta pra contar 
Quem passou pela avalanche/Hoje sabe onde pisar/Sei que a sombra entristece 
Mas também anestesia/Deixa o sonho te acordar e trabalha e confia e confia e confia
É...cê pensa que sabe o que você quer/Mas quem você pensa que você é? Seu erro pode ser um golpe de sorte/E o medo pode ser seu passaporte para a fé!
Não tente ser o que você não é/ Esteja aqui agora onde estiver 
A vida no seu peito bate forte e a vontade de viver é o passaporte para a fé!
 
"Lembrete" 
(Gustavito, Chicó do Céu e Luiz Gabriel Lopes)
Meu amigo não se esqueça/Do dia em que isso começou/E desde então de tudo/Que essa vida deu/Meu amigo reconheça/O barco que nos leva é um/E o sol que nos aquece/A voz e o coração/É bem maior do que esse medo esse nó/Que aperta vez em quando o peito e devagar/Fortalece a caminhada/Despertar, pra uma nova travessia/Deixar esvaziar, saber que a hora certa logo vem/Sem pressa, deixa estar que não demora/Não se esqueça/Que esse violão é seu endereço/E que esse verão é só o começo/De outros tantos que virão/Eu sei que nunca vai faltar/Pois temos muito o que aprender/Com o que já passou/Se concentre meu amigo/No impulso que nos faz cantar/E faz brotar a poesia sempre devagar/E é devagar que se desfaz todo medo/Que insiste em apertar os nós/Mas meu amigo/Reconhece-te a ti mesmo/Da valor ao caminho que te escolhe/Palavras têm poder/E os rastros que deixamos por aí/Depressa vão chegar no infinito/Não se esqueça/Que esse violão é seu endereço/E que esse verão é só o começo/De outros tantos que virão/Não se esqueça/Que esse violão é seu endereço/E que esse verão é só o começo/De outros tantos
 
"Canção do Amigo"
(Detonautas)
Os tempos são outros e ainda estamos aqui/A distância é grande mas eu nunca te esqueci/A gente quase não se fala, mas quando a gente se vê
O coração acelera é tudo tão natural/Dos nossos banhos de chuva e outros tantos carnavais/Das férias na praia ainda somos iguais/Os tempos mudaram e nós mudamos também/Mas isso aqui é mais forte/Uma corrente do bem
 
Você é o amigo que eu guardo no peito/Porque ninguém é perfeito
E o amor é assim/Também ama os defeitos/Entre idas e vindas, altos e baixos/Você sempre esteve aqui/Sempre esteve aqui e sempre vai estar
Lembro o primeiro porre, a primeira ressaca/O primeiro beijo da primeira namorada/A gente costumava passar horas conversando
Vários assuntos, vários discos rolando/Nosso próprio mundo era uma revolução/Foi você que me ensinou a tocar violão/Muitas dificuldades e muitos sonhos também/Mas isso aqui sempre foi forte/Uma corrente do bem/Você é o amigo que eu guardo no peito/Porque ninguém é perfeito/
E o amor é assim/Também ama os defeitos/Entre idas e vindas, altos e baixos/Você sempre esteve aqui
Sempre esteve aqui e sempre vai estar
 
Brodagem
(Charles Theone - Julio Moura)
 
Valeu amizade
Brodagem sem fim
É tudo verdade
O que falam de mim
 
Na camaradagem 
Eu levo de boa
Não tem sacanagem
Com a minha pessoa 
 
Valeu amizade
Meu bom companheiro 
Sem rivalidade 
De amor e dinheiro 
 
Valeu amizade 
Respeito de irmão 
Reciprocidade 
Consideração 
 
Valeu valeu meu amigo
Valeu valeu meu irmão 
Valeu valeu meu amigo
Valeu valeu meu irmão 
 
É questão de caráter 
E bom senso
De cumplicidade 
E afinidade

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