A adolescência de Augusto*, hoje com 22 anos, foi marcada por turbulências e percalços – e, portanto, foi também absolutamente comum. Ao mesmo tempo em que seus referenciais deixavam de ser, exclusivamente, mãe e pai, ele fazia descobertas sobre si e encarava um corpo em transformação, que, por vezes, tinha dificuldade de reconhecer. Enquanto gostaria de aproveitar a companhia de colegas, era também preciso que se dedicasse aos estudos a fim de conseguir vaga nas disputadas universidades públicas, já que não poderia arcar com os custos na rede privada. Além disso, ficava cada vez mais evidente como a livre expressão de sua sexualidade vinha se tornando motivo de conflito no seio familiar. Logo veio a conclusão do ensino médio e um novo revés: o distanciamento dos amigos de então.
Quando fala de como desenvolveu quadros de depressão e ansiedade, Augusto logo enfileira essa série de acontecimentos que, ele acredita, estão diretamente associados à manifestação da doença – que, aliás, só foi tratada anos mais tarde, depois que uma amiga o aconselhou e o ajudou a encontrar ajuda profissional; àquela altura, ele já convivia com ideações suicidas recorrentes. Ainda que se sentisse sozinho nos períodos mais difíceis, o estudante está longe de ser uma exceção: histórias como a dele são cada vez mais comuns, conforme indicam estudos sobre o tema e permitem inferir pesquisas que tratam de assuntos correlatos.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o número de adolescentes sofrendo com esse mal escalou 59% entre 2007 e 2017. As estimativas mais recentes indicam que cerca de 13% dos norte-americanos de 12 a 17 anos sofreram com quadros depressivos no período de um ano. É o que apontam dados da Pesquisa Nacional sobre Uso de Drogas e Saúde, de 2017, analisados pelo Pew Research Center, um think tank localizado em Washington que fornece informações sobre questões, atitudes e tendências que estão moldando os EUA e o mundo..
Ainda que não existam estatísticas sobre esse transtorno psiquiátrico no Brasil, a realidade por aqui não parece muito diferente. Embora seja importante ressalvar que a ideação suicida não é uma condição da pessoa deprimida – isto é, nem todo aquele diagnosticado com depressão vai tentar suicídio, assim como nem toda tentativa está relacionada a quadro depressivo –, a maioria dos estudos sobre autoextermínio menciona a doença como um dos principais fatores de risco em todas as faixas etárias. Neste caso, um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), divulgado em 2019, fornece indícios do tamanho do problema: entre 2006 e 2015, esse índice teve aumento acumulado de 24%.
E, agora, paira o temor de que, com a pandemia da Covid-19, as taxas de adoecimento mental e de suicídio se ampliem ainda mais. “O novo coronavírus exigiu que muitas mudanças fossem implementadas, alterando profundamente o nosso dia a dia. No caso das crianças e dos adolescentes, houve uma mudança no modelo de estudo, eles podem sentir que não estão rendendo tão bem quanto nas aulas presenciais, o que já cria uma ansiedade gigante. Além disso, passamos a conviver com notícias sobre a falta de leitos, sobre as mortes que estão acontecendo. Tudo isso gera medo de perder pessoas próximas e o medo de morrer”, avalia Renata Borja, pesquisadora e psicóloga especialista em terapia cognitivo-comportamental.
De fato, historicamente, quando eclodiram outras epidemias, os índices de ansiedade, depressão e suicídio se ampliaram – como concluiu a professora de epidemiologia psiquiátrica Karestan Koenen, que participou de uma conferência em abril, realizada pela Harvard TH Escola de Saúde Pública Chan, nos EUA. Na ocasião, a estudiosa citou os casos da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) na China, em 2002, e do ebola, no Oeste Africano, em 2013. No Brasil, uma triagem online conduzida pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) demonstrou que a tendência de aumento na incidência de depressão e de ansiedade já é uma realidade: em apenas 20 dias, tais índices, que antes eram de cerca de 4%, dobraram.
Ansiedade e estresse podem levar a hábitos tóxicos
Renata Borja acredita que, associado às mudanças abruptas de rotina, mesmo que temporárias, o aumento do nível de ansiedade e de quadros depressivos pode impulsionar hábitos problemáticos, incluindo o consumo descontrolado de medicamentos – registra-se: o faturamento com antidepressivos aumentou 15,7% em um ano, considerando dados até o mês de maio, segundo levantamento da IQVIA, uma consultoria especializada na indústria farmacêutica. O uso excessivo de bebidas alcoólicas também deve ser monitorado. Vale dizer, durante a pandemia, a venda destes itens aumentou 38% nas distribuidoras, 27% nas lojas de conveniência e 26% nos serviços de entrega em domicílio, de acordo com a Subsecretaria de Políticas Sobre Drogas da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Sedese).
“As privações impostas aos jovens por situações adversas geram frustração, tristeza, angústia, insegurança, medo. São emoções que sinalizam para o cérebro a necessidade de uma ativação positiva, ou seja, algo que dê prazer. O problema é utilizar estratégias mal-adaptativas do sistema de recompensa, como a bebida e os ansiolíticos sem prescrição médica, como uma tentativa de ajustar as emoções”, examina Renata. Ela defende que os pais fiquem atentos a tais comportamentos, lembrando que, entre outros danos, o consumo de álcool compromete o processo de aprendizagem e o desenvolvimento de habilidades.
Desigualdade social e desemprego são determinantes sociais para o suicídio
De acordo com a mencionada pesquisa da Unifesp, que indicou aumento dos índices de suicídio entre adolescentes, a desigualdade social e o desemprego são determinantes sociais relevantes para esse tema. Algo que gera especial apreensão. Sabe-se que, em 2019, 10,9 milhões de jovens brasileiros que não trabalhavam nem estudavam, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Há, agora, temor que a pandemia venha a agravar esse quadro.
No trimestre de março a maio, a desocupação chegou a 12,9%. Isto é, 12,7 milhões estavam desempregados. Já o número dos desalentados (aqueles que já não procuram emprego) chegou a 5,4 milhões. Os dados também são do IBGE.
“Atualmente, o suicídio é compreendido como um transtorno multidimensional, resultado de interações complexas entre fatores biológicos, genéticos, psicológicos, sociais e ambientais. O aumento de desemprego e da desigualdade social produz um ambiente social de risco”, explicou o psiquiatra Elson Asevedo, em entrevista a O TEMPO à época em que o estudo da Unifesp foi divulgado. Ele conduziu a pesquisa ao lado de Jair Mari e Denisse Jaen-Varas.
Ideia irreal de sucesso provoca frustração entre os mais jovens
A psicóloga e pesquisadora Renata Borja salienta que, potencializado pela pandemia, o problema já vinha se agravando. É o que observa tanto em sua experiência clínica quanto em um estudo que conduziu em uma escola da rede particular de Belo Horizonte, segundo o qual 75% dos alunos com idade entre 14 e 16 anos revelaram sofrer de ansiedade. Ao detalhar o levantamento, é possível verificar que 22,54% deles se disseram ser pouco ou nada ansiosos, 13,56% responderam moderadamente, 23,11% se consideraram muito e 40,7%, totalmente ansiosos.
Ela sublinha que o mais preocupante é que, ao serem questionados se a ansiedade causa prejuízo a eles, apenas 9,54% disseram que não, 15,57% que atrapalha pouco e 19,09% consideraram que a emoção os prejudica moderadamente. No extremo, 22,61% responderam que são muito 33,16% que são totalmente afetados.
Em uma outra pesquisa, Renata quis saber o que, para diversos grupos etários, significava ser bem-sucedido. “De todas as gerações entrevistadas, identifiquei que aqueles com idade entre 18 e 25 anos são os mais disfuncionais, afirmaram ser mais felizes e mais infelizes. Essa dicotomia tem origem em diversas causas: alta cobrança por resultados, necessidade de sucesso imediato ao invés do sucesso construído em longo prazo”, comenta.
“Fiz essa pesquisa depois de ouvir, repetidas vezes, em meu consultório jovens se dizendo fracassados. Eles não usavam expressões como: ‘Eu fracassei ao tentar…’. Não. Eles diziam que eram fracassados. Quis entender o que significaria, então, o sucesso para eles”, relata. “Identifiquei que há uma ideia socioculturalmente construída de sucesso que é irreal. Além disso, essas pessoas são estimuladas a uma lógica do ‘tudo ou nada’. São pressionados, por exemplo, a estudar para ‘ser alguém na vida’. Logo, se não conseguir ingressar em uma boa faculdade, será um ‘ninguém’. É um jeito cruel de pensar”, critica.
Nos grupos em que observou pessoas que se diziam bem-sucedidas, verificou que a noção de sucesso era outra, individualizada e flexibilizada. “Elas conseguiram se afastar dessa ideia completamente fantasiosa, mas, para conseguir repensar esse conceito, é preciso um referencial, que pode faltar aos mais jovens”, comenta.
Dedicar tempo ao cuidado dos filhos é uma estratégia preventiva
A presença genuína dos pais no cotidiano de seus filhos pode não evitar o adoecimento mental, mas é uma barreira para esses distúrbios psiquiátricos. É o que defende a educadora parental Fernanda Teles. “O cenário parental contribui para o aumento dos índices de depressão e ansiedade. Hoje, as famílias são cada vez menores, o que implica em uma rede de apoio mais frágil, além de que há o excesso de atividades, tanto dos adultos como das crianças e dos adolescentes”, expõe. Para ela, a indisponibilidade física e, principalmente, emocional causa uma sensação de abandono: “São pessoas que, muitas vezes, estão confinadas com seus familiares, mas se sentem sozinhas, já que não há trocas efetivas”.
“A gente precisa entender que dar atenção é muito diferente de atender todas as demandas das crianças e dos adolescentes, mas os pais devem ser empáticos, acolher e ouvir, pois as demandas são reais e importantes para eles”, avisa a especialista em parentalidade positiva. “E não estou falando sobre a quantidade de tempo que passamos juntos, mas sobre qualidade de tempo: se a gente consegue um tempinho, mas com presença genuína, longe de distrações, do computador, do celular, isso já vai evitar desconforto dentro do lar”, adverte.
Esses pequenos intervalos de conversa, troca de olhares, abraços e brincadeiras são o que Fernanda chama de “encher o tanque dos afetos”. “Se fizer isso, você provavelmente vai ter um dia mais tranquilo, em que a criança ou o adolescente vai se sentir mais amada, vai se sentir melhor, e, por isso, vai demandar menos”, conclui.
Mesmo que considere algo desafiador, Fernanda também sugere que os pais busquem alternativas para reduzir o tempo que seus filhos passam frente a telas – o que inclui smartphones e tablets, computadores e televisores: “O uso excessivo tem gerado crianças ansiosas, agressivas, que apresentam sérios desafios de comportamento”.
Estabelecer rotinas e repensar ideal de sucesso também são variáveis importantes
“O adolescente precisa de rotina. Mesmo que em quarentena, os responsáveis podem e devem estabelecer regras e atividades a serem feitas diariamente e impor limites. Esse momento também deve ser encarado pelos pais como uma oportunidade de se conectar mais com os filhos”, acrescenta a psicóloga Renata Borja.
Para ela, ressignificar o que se entende por sucesso é fundamental. “Os pais, os professores e a sociedade no geral precisam dizer aos jovens que ser bem-sucedido não é focar apenas em resultado, porque é algo que, invariavelmente, vai gerar frustração. Precisamos aprender a focar no aprendizado, no caminho. Temos que incentivar os jovens a se engajar em projetos, incentivar a testarem a criatividade”, garante.
A profissional da psicologia salienta que quaisquer pessoas próximas, fundamentalmente os pais, devem estar em alerta quando jovens e adolescentes manifestaram sinais de depressão, como alterações de humor, no sono, irritabilidade, angústia, agressividade, ansiedade, tédio, tristeza. Neste caso, de nada adiantam palavras de cobrança. “Dizer que não tem motivos para ficar daquele jeito, que tem tudo… Isso não ajuda em nada”, pontua. O ideal, diz, é demonstrar acolhimento e buscar ajuda profissional. Foi o que fez a amiga de Augusto, citado nos parágrafos iniciais desta reportagem e que, hoje, sente alívio em anunciar: “Existe vida pós-depressão!”.
CVV. O Centro de Valorização da Vida promove apoio emocional e de prevenção do suicídio, com atendimento gratuito e sob sigilo a todos que querem e precisam conversar. Telefone 188, email e chat 24 horas todos os dias.