Sexualidade

Preconceito contra fetiches é perpetuado até por profissionais da saúde

Sexóloga explica a diferença entre as parafilias e o transtorno parafílico


Publicado em 04 de agosto de 2023 | 03:00
 
 
 

Recém-solteira, Luana* explorava o universo de possibilidades dos aplicativos de relacionamento pela primeira vez. “Para mim, aquilo era coisa de outro mundo”, lembra, mencionando que vinha de um namoro longo, tão longo que era anterior à chegada desses recursos. Em uma dessas interações, que já havia se tornado uma conversa interessante, como ela própria classifica, algo começou a lhe soar estranho. “Depois de um tempo, o rapaz começou a me perguntar sobre como era o meu cocô. Eu achei esquisito, achei que fosse algum tipo de brincadeira. Foi quando ele me explicou que aquele era o fetiche dele, que ele gostava de ver a pessoa, enfim… fazendo as necessidades dela”, conta, um tanto constrangida. 

Psicóloga inteirada nos estudos sobre sexualidade, Luana reagiu com tranquilidade. “Eu achei bacana que ele foi honesto desde o começo, explicando o que buscava”, diz. Mas, para ela, o match já não seria mais possível. “Falei que eu não curtia (o fetiche escatológico) e lhe desejei boa sorte nessa busca”, recorda. 

O comportamento de Luana, que, embora reconheça o espanto, evitou rompantes e se manteve cordial, destoa da celeuma que tomou as redes sociais depois que o ator Fernando Mais, 29, foi exposto, no Twitter, no mês passado, como o autor de um livro sobre o fetiche por fezes – antes, ele tentava proteger a própria identidade assinando a publicação com o pseudônimo “Gustavo Scat”. Após ser descoberto, Fernando se viu alvo de uma caçada. Ele precisou lidar com ameaças e questionamentos sobre o seu trabalho como intérprete de um personagem em um filme infantil. Houve também quem denunciasse a obra no intuito de retirá-la das prateleiras da Amazon – mas o efeito foi o inverso, e o livro acabou figurando entre os mais vendidos na categoria de títulos eróticos. 

As reações raivosas ecoam uma lógica que tende a punir tudo aquilo que se desvia da norma socialmente aceita. “O que observamos é que, enquanto as preferências sexuais convencionais são vistas como ‘normais’, sendo aceitas culturalmente e consideradas saudáveis, a sociedade entende as parafilias como interesses sexuais ‘anormais’, que causam conflitos e geram riscos à segurança da própria pessoa ou das pessoas com quem ela se relaciona”, avalia a psicóloga e sexóloga Graziela Chantal, que atua como terapeuta de casal. “Tudo isso faz com que aqueles que manifestam algum tipo de parafilia sejam estigmatizados, tendo suas condutas interpretadas como inaceitáveis”, complementa. 

Graziela detalha que as parafilias não devem ser confundidas com o transtorno parafílico – este, sim, um problema. “Enquanto as primeiras podem ser descritas como práticas não convencionais, mas que não necessariamente são patológicas, o último representa uma conduta que interfere nas relações interpessoais, causa desconforto ou dano para a própria pessoa ou para outras”, informa. Ela prossegue exemplificando que o desejo parafílico, que pode ser saudável, tem a ver com um foco sexual específico, seja em objetos, atividades ou situações atípicas – como o fetiche por pés, pela roupa íntima ou a prática do BDSM (bondage, dominação, submissão, masoquismo), além de se manifestar também em fantasias, desejos ou comportamentos repetitivos. “Já o transtorno vai ser diagnosticado quando a presença da parafilia causa sofrimento e prejuízo na vida das pessoas e em suas relações interpessoais”, determina. 

Em vez de cuidado, preconceito 

O psicólogo e terapeuta sexual Rodrigo Torres alerta que o preconceito contra pessoas praticantes de parafilias não está restrito às redes sociais, se infiltrando também em espaços de conhecimento. “A partir do momento em que a sociedade entende a parafilia como um comportamento anormal, seria ingênuo imaginar que a medicina e a ciência tratariam essas pessoas sem preconceito”, reflete, dizendo ser fundamental a promoção da compreensão de que essas práticas não podem ser consideradas necessariamente um transtorno. “Os comportamentos sexuais que fogem das normas sociais e culturais existem e devem ser considerados pelos profissionais da saúde sem que haja preconceito”, aponta.  

“Para isso, a comunidade médica precisa ter acesso efetivo à educação em sexualidade, a partir da qual chegaremos a uma abordagem mais inclusiva. É o que a gente chama de ‘competência cultural para o atendimento de pessoas diversas’, algo que precisa chegar aos profissionais da saúde para que eles consigam atender esses pacientes sem julgá-los”, reforça o psicólogo. “Esse conhecimento é importante, inclusive, para o médico saber distinguir um transtorno parafílico de uma parafilia, fazendo o diagnóstico correto e sabendo para onde encaminhar e tratar aquela questão”, menciona. 

“Com relação à sociedade em geral, acredito que, quanto maior for a compreensão desses comportamentos sexuais, mais fácil será o desenvolvimento da sexualidade do indivíduo. Dessa forma, quando tivermos uma educação sexual que venha desde a base, conseguiremos nos desenvolver melhor, reduzindo a incidência de problemas emocionais e psicológicos relacionados aos mitos e à ideia de que alguns comportamentos sexuais te tornam uma aberração”, sustenta, lembrando existirem diversos mitos que perpetuam ideias errôneas de que toda parafilia é sempre ruim e prejudicial à saúde, ao prazer e à parceria. “Mas, na verdade, como tudo na vida, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose”, conclui. 

Como é o tratamento do transtorno parafílico 

A pedido da reportagem de O TEMPO, Graziela Chantal listou uma série de possibilidades de tratamento para casos de transtorno parafílico. Veja:  

  • Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC). O objetivo é orientar a pessoa a modificar os pensamentos disfuncionais, criando estratégias para a promoção dessa mudança a fim de reduzir os comportamentos prejudiciais a partir do desenvolvimento de maneiras mais saudáveis de expressão da sexualidade; 
  • Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT). Ensina o paciente a aceitar as emoções e pensamentos indesejados ao mesmo tempo em que motiva a busca por um comportamento mais saudável; 
  • Terapia de casal. Indicada se a parafilia gerar conflitos no relacionamento. Por meio dela, as partes são estimuladas a compreender as preocupações de cada um, aprendendo a se comunicar de maneira aberta e honesta;  
  • Terapia sexual. Ajuda a pessoa a entender que, se aquela parafilia for a única forma de se excitar e alcançar prazer, tal condicionamento pode gerar sofrimento a ela ou a outra pessoa. A partir dessa conscientização, o paciente é estimulado a explorar outras formas de excitação, fantasias e desejos.

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