Natal, amigo-oculto, Dia das Crianças, dos Namorados, das Mães, dos Pais, dos Avós, aniversários, casamentos, batizados… São muitas as datas comemorativas e ocasiões especiais – concentradas, principalmente, no último semestre do ano – em que nos comprometemos implicitamente a presentear amigos e familiares. Trocar embrulhos é algo que compreendemos como um gesto de carinho pelo outro – e contrariar esse pacto cultural é assumir o risco de parecer desinteressado. Por isso, sem muita reflexão e na esperança de fortalecer vínculos e de criar um contexto de bem-estar, são comuns as corridas às lojas para comprar presentes para pessoas queridas, mesmo que muitas vezes esses itens sejam um tanto impessoais. O objetivo, nestes casos, parece ser apenas cumprir esse protocolo social estabelecido e, portanto, o itinerário se repete mesmo que o ato signifique um maior endividamento e até comprometa o orçamento familiar.
Para se ter uma ideia de como o hábito está arraigado à cultura popular, no Natal de 2019, por exemplo, cerca de 8% dos brasileiros assumiram que deixariam de pagar contas para que seus filhos não tivessem seus desejos de consumidores mirins frustrados, conforme pesquisa realizada pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil). Somados a outros fatores, como implicações educacionais e ecológicas, tais dados entram na mira daqueles que questionam se comprar presentes é mesmo um genuíno gesto de amor, uma atitude capaz de ampliar a sensação de felicidade de quem presenteia ou se, na verdade, é um sintoma de como os dias mais importantes do calendário de cada um foram sequestrados pela cultura do consumismo.
“Hoje, é muito comum perceber que o ato de presentear está muito relacionado a essa lógica do consumir no anseio de preencher vazios”, sustenta Elizabeth Avelino Rabelo, doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), que recorre a uma tirinha do cartunista argentino Quino em que a popular personagem Mafalda aparece em frente a um aparelho de televisão. “Use”, “compre”, “beba”, “prove” são algumas das expressões que aparecem, provocando reação da menina: “O que eles pensam que nós somos?”. Em seguida, reflete: “O que nós somos?”. E constata: “Os malditos sabem que ainda não sabemos”.
“Esse cartum resume bem a nossa relação com as mercadorias. O autoconhecimento exige muita formação humana e muito exercício reflexivo, que não são habilidades normalmente estimuladas. Pelo contrário, somos distanciados de saber quem nós somos, havendo uma manutenção desse vazio. E, por não estarmos muito disponíveis e por termos dificuldade de lidar com a angústia de não saber quem somos, vamos aceitando sugestões para compor nossa identidade a partir de objetos, de coisas”, explica, acrescentando que, em alguns casos, o ato de presentear está relacionado a esse mesmo vazio. “É uma variação desse sentimento e dessa rotina em que somos atropelados por afazeres e acabamos não conseguindo dedicar tempo a nós mesmos e também aos outros. Não dá para generalizar, mas sabemos que é muito comum que o presente se torne uma forma de compensação. A gente vê isso muito na relação entre pais e filhos”, comenta Elizabeth.
Carência de atenção
Consultora de estilo pessoal e autora do livro “Substitua Consumismo por Autoestima”, Fernanda Resende segue o mesmo raciocínio. Ela acredita que o atual modelo de capitalismo não apenas mistura o conceito de cidadão com o de consumidor como também “rouba de nós o tempo ao nos estimular a trabalhar mais do que a gente precisaria para pagar pessoas para fazer trabalhos que, no fim das contas, poderíamos fazer”, diz.
“Mas, espera, e se a gente abrisse mão de ter tantas coisas? Não sobraria tempo para investir em relacionamentos e afetos de forma que não precisaríamos compensar essa falta com presentes?”, questiona, reconhecendo que essa mudança de comportamento, exige um esforço consciente e cotidiano. “Estamos fechados nesse ciclo, cobrados a sermos produtivos o tempo todo e a medir o sucesso pelo que possuímos”, sinaliza.
“Na contemporaneidade, somos disputados como consumidores o tempo todo. Hoje, com as redes sociais, a nossa atenção é uma mercadoria concorrida. Por que não nos apropriamos disso? Se queremos ser agradáveis e celebrar alguém, poderíamos oferecer esse item que tem sido tão competido e dar ao outro mais atenção do que coisas. O mundo já está sobrecarregado de coisas, mas as pessoas estão carentes de atenção”, propõe Fernanda.
Mães optam pela valorização das vivências
Rebelando-se contra essa lógica de uma quase obrigatoriedade de ir às compras a cada nova data comemorativa, a servidora pública Bárbara Mota, 36, optou por, nessas ocasiões, não presentear com objetos a sua filha, Manuela, de 3 anos. “O último episódio mais marcante foi o Dia das Crianças, quando optamos por passar o dia com ela, fazendo brincadeiras e curtindo esse tempo juntos”, comenta, lembrando que a situação chamou atenção de seus seguidores nas redes sociais – no Instagram, ela mantém a conta Meu Povo Falei, em que divaga sobre questões relacionadas à realidade da maternidade.
A cultura de valorização das vivências vem de berço. “Nas minhas lembranças, eu recordo mais dos meus pais fazendo piquenique do que dos presentes que ganhei”, diz. E, quando compra algum item para Manuela, Bárbara se preocupa com o tipo de brinquedo que está adquirindo. “Evitamos comprar coisas que vão isolar a criança. Sempre procuramos algo mais educativo e que propicie bons momentos em família”, garante.
Mãe de Théo, de 5 anos, e de Lara, de 8, a contadora e blogueira Thaísa Freitas, 32, é outra que não é muito favorável a esse pacto cultural de celebrar datas especiais com a troca de embrulhos. “A única exceção é o Natal. Mas, mesmo assim, pensamos em coisas que vão ser boas para eles”, detalha. Além disso, ela busca incentivar nos filhos o hábito de doar seus brinquedos sempre que ganham novos. “Eu e o pai deles (o contador Arthur Schmidt, 37) sempre falamos que a vida é uma constante troca, que precisamos dar algo para recebermos”, observa, reconhecendo que, quando começaram a adotar essa postura, houve alguma dificuldade para as crianças desapegarem de alguns objetos.
“Sobre os meninos não serem consumistas é um desafio diário. Eu penso que, igual o pediatra fala em evitar doces até os 2 anos, é também importante evitar propagandas na infância. Como é difícil que não fiquem expostos a comerciais na internet e em programas de TV a cabo, a gente passou a falar com eles. Hoje, os dois têm entendimento se algo é inacessível e costumam aceitar o ‘não’ com tranquilidade. Inclusive, quando vão pedir algo, perguntam se dá para comprar”, explica a produtora de conteúdo do blog Entre Rosa e Azul.
As duas mães admitem que, ao estabelecer esse modelo de celebração que não é pautada por presentes, não haviam pensado em um aspecto ecológico e de preservação do planeta. “É algo que vem como consequência. Quando a gente dá um passo consciente, outros acontecem naturalmente”, pontua Bárbara.
Sentido do presentar é esvaziado pela cultura do consumismo
Tanto a psicóloga Elizabeth Rabelo como consultora de estilo pessoal Fernanda Resende sublinham que comprar presentes para pessoas queridas não é, necessariamente, um problema. Pelo contrário. A crítica que fazem reside na compulsoriedade desse gesto, que, ao deixar de ser espontâneo, torna-se apenas algo protocolar. “Não faz sentido comprar algo apenas pelo fato de ser uma data comemorativa”, argumenta a doutora em psicologia.
Para frear a banalização do ato de presentear e impedir que essa genuína expressão de carinho se converta em uma forma de compensação, é necessário um resgate do sentido particular que esses eventos possuem. “Eu percebo como um curto-circuito essa corrida às compras, pois somos levados a pensar na aquisição de uma coisa sem que a gente faça o percurso completo de compreender o que faz daquele um dia especial”, examina Elizabeth.
Investir em experiências é outra alternativa ao ímpeto consumista, em que presentes podem facilmente cair em um lugar de impessoalidade. “É interessante como a gente costuma ser mais levado, no automático, a pensar em objetos quando estamos falando em dar algo para alguém. Mas essa não é a única opção. Dedicar um tempo para fazer um jantar para uma pessoa querida, por exemplo, é uma declaração de amor”, cita Fernanda.
Gastar com o outro traz sensação de satisfação maior do que gastar com si próprio, indica pesquisa
Ao contrário do que a maioria das pessoas acredita, quando se age conscientemente e espontaneamente, gastar dinheiro em benefício de outra pessoa traz uma sensação de felicidade maior do que quando se gasta consigo mesmo. É o que evidenciam uma série de estudos elencados no artigo “Gastos pró-sociais e felicidade: usar dinheiro para beneficiar os outros compensa”, assinado por pesquisadores das universidades canadenses da Colúmbia Britânica e de Simon Fraser e da norte-americana Harvard Business School.
“Os benefícios de tais gastos são observados em adultos de todo o mundo, e o brilho caloroso de doar pode ser detectado até mesmo em crianças pequenas”, apontam os estudiosos.
Como se gasta. Em um experimento inicial realizado em 2008 e citado no texto, estudantes universitários receberam uma nota de US$ 5 ou US$ 20, sendo que metade deles foi orientada a comprar coisas para si próprios e a outra metade a presentear outra pessoa. “Naquela noite, as pessoas designadas para gastar o dinheiro com outra pessoa relataram que se sentiram mais felizes ao longo do dia do que aquelas designadas para gastar o dinheiro consigo mesmas. Curiosamente, a quantidade de dinheiro que eles receberam não influenciou em sua felicidade”, detalham os pesquisadores. A partir desta evidência, os pesquisadores observaram que, para alcançar uma melhora na sensação de bem-estar, o como se gasta é tão ou mais importante do que o quanto de capital se tem para gastar.
Característica universal. Em um outro teste, realizado em 2012, os estudiosos deram a crianças com pouco menos de dois anos uma pilha de guloseimas. Em seguida, elas foram convidadas a dar um de seus doces para um fantoche que comia com entusiasmo. “As crianças exibiam maior felicidade quando davam guloseimas para o fantoche do que quando elas próprias recebiam guloseimas. Além disso, as crianças mostraram os níveis mais altos de felicidade quando deram uma recompensa de seu próprio estoque”, aponta o artigo, assinalando que os resultados sugerem que a capacidade de obter alegria ao doar pode ser uma característica universal da psicologia humana.
Contexto é necessário. Os autores do artigo alertam que “o argumento de que os seres humanos têm uma tendência universal de sentir alegria ao doar não significa que toda forma de gasto pró-social sempre produz benefícios emocionais”. Isto é: se o ato acontece mecanicamente, menores serão as chances de a boa ação repercutir para o bem-estar do benfeitor.
Experiência é essencial. Em um terceiro experimento, este realizado em 2013, fica evidente como a vivência, mais que o gasto em si, é essencial para o desenvolvimento de uma reação positiva. Neste caso, os participantes que receberam um cartão-presente de US$ 10 da rede de cafeterias Starbucks ficavam mais felizes se gastassem esse cupom na companhia de um amigo em vez de apenas consigo mesmos.
Benefícios para a saúde. O artigo ainda cita que, além da felicidade, outros “benefícios são observados dos gastos pró-sociais podem ser detectados no cérebro e no corpo”. Pesquisas que indicam que, ao dar algo para alguém, áreas de recompensa do cérebro são ativadas e consequências físicas são geradas. “Embora qualquer decisão de gasto provavelmente tenha efeitos de curta duração nos processos biológicos, essas decisões podem, com o tempo, moldar importantes resultados de saúde. Os adultos mais velhos que relatam dar mais dinheiro e outros recursos a outras pessoas apresentam melhor saúde geral”, anotam os autores, citando que o risco de distúrbios do sono, por exemplo, é menor neste grupo.