Auxílio maternidade

Retorno ao presencial expõe falta de rede de apoio para as mães

Pandemia e necessárias medidas de isolamento social prejudicaram a formatação de uma estrutura de suporte para a criação dos filhos


Publicado em 05 de maio de 2022 | 03:00
 
 
 
normal

Quando a filha da arquiteta e urbanista Amanda Oliveira, 32, nasceu, o mundo ainda tentava entender o comportamento do novo coronavírus. Os modos de transmissão, a letalidade, as formas de prevenção e os protocolos médicos eram desconhecidos. Nesse cenário, ela se sentia constantemente ansiosa e apreensiva. Amanda e o marido temiam pelas vidas deles próprios e, sobretudo, pela sobrevivência da recém-nascida. Nos últimos dois anos, a família cumpriu as recomendações de isolamento e só mais recentemente iniciou um processo de flexibilização. “Nós não recebíamos visitas. Por isso, até hoje, alguns parentes não conhecem nossa filha”, conta, acrescentando que o casal celebrou quando as empresas em que trabalham os colocaram em regime de home office. 

Neste ano, Amanda foi informada de que as atividades laborais voltariam à modalidade presencial e, mais uma vez, se viu desesperada. “Durante a pandemia, principalmente nos momentos mais turbulentos, sei que, como eu, muitas mães tiveram mais dificuldade para constituir uma rede de apoio, já que até mesmo as visitas precisavam ser negociadas e mais restritas. Não vou dizer que foi fácil conciliar trabalho, a maternagem e os cuidados com a casa, mas, naquele momento, por estarmos em casa, a necessidade de construir essa estrutura de acolhimento acabou ficando camuflada. Parecia que, por mais que fosse exaustivo, nós conseguiríamos sozinhos”, avalia. Ela pondera que, com a retomada do presencial, tem sentido grande dificuldade de lidar com uma rotina em que fica longe da filha e em que precisa, muitas vezes, se desdobrar para cumprir tarefas aparentemente fáceis justamente por não contar com uma rede de apoio sólida. 

O relato da arquiteta está em consonância com os muitos desabafos ouvidos pela doula Bel Cristina sobre os dilemas de pessoas que, em um primeiro momento, puderam cumprir medidas sanitárias de isolamento e tiveram a oportunidade de trabalhar em casa, mas que, agora, estão voltando a uma rotina de deslocamentos para suas jornadas laborais. “Muitas admitem que, durante os períodos mais difíceis que atravessamos nos últimos dois anos, houve, sim, uma sobrecarga de trabalho e reconhecem que foi difícil compreender esse fluxo do trabalho em casa, mesmo em ambientes em que ficavam mais disponíveis para os bebês”, diz. 

Apesar dos pesares, Bel lembra que algumas dessas mães conseguiram constituir alguma estrutura de acolhimento, fundamentalmente porque, naquele período, muitos familiares, amigas e amigos também passaram a cumprir expediente em casa. “Para esse grupo, o retorno da rotina de trabalho presencial foi, pouco a pouco, desarticulando essa rede. Recebi relatos de mulheres que, diante dessa realidade, optaram por sair do emprego ou buscaram vagas em locais em que poderiam manter o home office ou, pelo menos, ter uma jornada menor. Há também histórias de mães que se mudaram para as cidades de suas famílias, abandonando a carreira, para ter melhor qualidade de vida e para ter condições de se dedicar à maternagem”, situa. 

A doula acrescenta que, para as que continuaram em seus empregos, outros dilemas se apresentaram. “O medo da pandemia continua uma realidade. Algumas dessas mães não se sentem seguras no ambiente de trabalho e, principalmente, no transporte coletivo. Elas temem levar a Covid-19 para dentro de casa e infectar seus filhos, que ainda não foram vacinados”, comenta, abordando o fato de que só crianças com mais de 5 anos podem ser imunizadas. “Elas chegam a relatar que colegas as encaram com olhar de reprovação por ainda usarem máscaras faciais”, cita. E, quando conseguem vaga em creche, o medo de contágio pelo coronavírus aparece nesse contexto também. Nesses casos, o equipamento que se constitui como importante elemento nessa estrutura de apoio à parentalidade acaba tornando-se também uma questão. 

“O afastamento em relação aos bebês também foi muito sentido, com pessoas contando que, muitas vezes, tinham crise de choro por sentir falta da presença dos pequenos”, salienta, destacando que, mais uma vez, a fragilidade das redes de apoio se mostraram um problema. “Há diversos relatos de mães que se sentiram desrespeitadas, que tinham suas orientações completamente desconsideradas pelas pessoas que se dispuseram a cuidar da criança”, sinaliza. Um exemplo é a questão do aleitamento exclusivo até os 6 meses. “Como a licença-maternidade dura só 4 meses, essas mães chegavam a fazer a retirada do leite para que esse cuidador alimentasse o bebê nesse período em que ela estava fora. Mas essas pessoas simplesmente ignoravam isso, dizendo que aquela decisão não passava de uma frescura”, critica. 

Isolamento materno 

“Sejamos honestos, as mães sempre estiveram em isolamento social, dentro e fora da pandemia, desde que passamos a entender o cuidado das crianças como algo da esfera privada e doméstica. Como doula e mãe solo de uma criança de 4 anos, consigo dizer que a experiência da quarentena é muito parecida com a do puerpério, em que a solidão, a sobrecarga de tarefas e o isolamento da sociedade são sentidos tão drasticamente”, avalia a antropóloga Thais Rocha, 25, que é pesquisadora integrante do Grupo de Estudos em Gênero e Sexualidade da Universidade Federal de Minas Gerais (Gesex/UFMG). Ela pondera que, nesse momento, o que antes era dividido entre a rede de apoio formal, incluindo creches e escolas, e a informal, formada por figuras como avós, tias e amigas, ficou concentrado no trabalho feminino e materno, dentro da maior parte dos lares brasileiros, na figura da mãe. 

Leia também: Síndrome da Mulher-Maravilha: armadilha dos novos tempos

“Nos últimos dois anos, nós, mães, estivemos nos debatendo para nos manter no mercado de trabalho, seja trabalhando em regime remoto e cuidando das crianças ao mesmo tempo, ou trabalhando presencialmente e deixando as crianças com alguém da rede de apoio informal, comumente outra mulher. Muito se especulou sobre como voltaríamos da pandemia. Se iríamos dar mais valor ao trabalho de cuidado, se iríamos repensar jornadas exaustivas e improdutivas de trabalho. Mas o que vejo acontecer, com o retorno presencial, é também um retorno para o mesmo ponto em que paramos. Ou seja, o cuidado, o trabalho doméstico e a múltipla jornada feminina continuam sendo tratados como questões da esfera privada, sem muito espaço para discussão no mercado de trabalho”, critica. 

Thais reconhece que trabalhar em casa causava nela uma sensação de exaustão, sendo necessário combinar até simultaneamente atividades muito diversas e diferentes entre si, como realizar reuniões cansativas ao mesmo tempo em que fazia almoço e dever de casa com a filha dela. Contudo, analisa que poder trabalhar em casa foi o que possibilitou a ela alcançar melhores posições na carreira sendo mãe solo. “Antes, eu não conseguia ocupar vagas presenciais por não ter com quem deixar minha filha durante a jornada de oito horas, além do tempo gasto no deslocamento”, diz.  

Para a antropóloga e doula, o retorno do regime presencial, quando ocorre sem a devida reflexão dos impactos nos lares, pode gerar retrocessos ou acirrar ainda mais as desigualdades entre trabalhadoras que são mães e pessoas sem filhos. “Os horários das creches públicas dificilmente contemplam os horários comerciais e dos escritórios. Quem sai mais cedo do trabalho e tem a jornada descontada por ter que buscar filhos na creche? Quem falta no dia em que uma criança adoece? São as mulheres que assumem a carga de responsabilidade pelo cuidado”, assevera.  

“No meu atual emprego, solicitei a possibilidade de manter minhas atividades em regime híbrido, assumindo mais funções remotas do que colegas que não têm filhos ou não cuidam de dependentes. Mas tenho consciência de que essa realidade é uma exceção e que a possibilidade de discutir esse tema é fruto de muito esforço e que, às vezes, o simples fato de trazer essas questões à tona pode significar a estigmatização de funcionárias que são mães”, relata, adicionando que a chefia direta dela é uma mãe também. “Tenho certeza da importância da escuta dela para a minha solicitação”, pontua. “Meu outro chefe, que é pai de uma criança pequena, após discutirmos as potências do regime híbrido para quem tem filhos, me convidou para pensar um projeto de implantação de salas de brincar ou de auxílio-creche no nosso ambiente de trabalho”, conta, elogiando o esforço de se repensar o ambiente de trabalho, tornando-o mais acolhedor para pessoas com filhos.

Leia também: Ideia de maternidade aceita ainda é a de um conto de fadas, diz estudiosa

“Ser mãe não é o que nos faz ausentar mais do trabalho para cuidar das nossas crianças. O que causa esse impacto é a desresponsabilização do restante da sociedade no acolhimento da infância”, sentencia Thais. “Quanto mais oportunidades a sociedade abre para uma mulher que é mãe, menos a maternidade será considerada impedimento para o trabalho remunerado. A maternidade acolhida no mercado de trabalho só tem a contribuir para a construção de outras formas de trabalhar, que funcionam de acordo com o contexto familiar”, defende.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!