SÃO PAULO. Uma molécula capaz de fulminar bactérias e que possui elevado poder alvejante – utilizada industrialmente para branquear madeira – tem ganhado fãs entre familiares de pessoas com autismo. Mas não por suas comprovadas capacidades, e, sim, por uma suposta característica de combater os sintomas do transtorno.
Conhecido em fóruns, redes sociais e em vídeos na internet como MMS (sigla em inglês para solução mineral milagrosa), o dióxido de cloro (ClO2) foi alçado à categoria de panaceia em 2006 por Jim Humble, que afirma ser um alienígena da galáxia de Andrômeda e que fundou a Genesis 2 – Igreja de Saúde e Cura (em tradução livre). Segundo seu site, Humble teria aprendido sobre os supostos poderes curativos do dióxido de cloro em 1996, durante viagem à América do Sul, onde buscava ouro.
Uma apresentação da substância (na forma de solução) é considerada um dos pilares sagrados de sua igreja – usada para tratar, além do autismo, resfriado, câncer, malária, HIV/Aids, Alzheimer etc.
Alguns dos problemas causados pelo contato excessivo e/ou crônico com dióxido de cloro são irritação e lesão de mucosas, desidratação, náuseas, enjoos e prostração. Entusiastas afirmam que esses sinais de intoxicação, são, na verdade, indícios de que o tratamento está funcionando.
É possível adquirir pela internet kits para fabricar a solução de ClO2 em casa. Mas o número de casos que deram errado tem crescido, segundo a advogada Adriana Monteiro da Silva, que coordena a Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Autista da OAB-DF e que tem coletado depoimentos.
“Algumas pessoas perdem parte do intestino, há corrosão de órgãos internos e até óbitos, os quais não podemos relacionar diretamente ao tratamento. É uma alternativa que envolve desespero”, diz. Em hospitalizações decorrentes das aplicações, dificilmente a família relata aos médicos o uso do dióxido de cloro, conta a advogada.
O estudante Lucas (nome fictício) conta que os pais tratam seu irmão, que sofre de uma forma severa de autismo, com solução de ClO2 desde o último mês de dezembro. Ele diz que o tratamento é baseado nas fases da Lua e que o irmão está ficando muito magro. O protocolo deve se estender por meses.
Uma das evidências de que a droga estaria funcionando seriam fragmentos de mucosa intestinal expelidos após os sucessivos enemas (injeção de líquido pela via retal). Os defensores da MMS afirmam que esses pedaços de intestino são vermes desconhecidos (ou ocultados) causadores dos sintomas do autismo. Não há qualquer comprovação de que isso procede.
Dificilmente haverá uma terapia para todos os casos, diz o professor da Universidade da Califórnia em San Diego Alysson Muotri. “Existem vários quadros que se encaixam no que chamamos de autismo. O futuro está pendendo para uma estratificação genética ligada a essa heterogeneidade”, diz. Hoje há tratamentos focados em terapias comportamentais e físicas.
Professor da USP compara molécula à ‘pílula do câncer’
São Paulo. O professor de psiquiatria da criança da Universidade de São Paulo (USP) Guilherme Polanczyk alerta que “algumas pessoas exploram a vulnerabilidade dos pacientes e de suas famílias”.
Segundo ele, há um paralelo entre o caso do ClO2 e o da fosfoetanolamina, a “pílula do câncer” – as duas moléculas ganharam adeptos mesmo sem apresentar evidências científicas de que tratam doenças.
Mesmo se fosse algo inócuo, ainda haveria problemas, diz a psiquiatra Rosa Horita. “Esses tratamentos drenam recursos das famílias que poderiam ser direcionados para aqueles com eficácia comprovada”, afirma.
Outro aspecto, mascarado pelo viés de observação, é o desenvolvimento da criança autista, algo que independe de qualquer tratamento – e que é acelerado com as terapias corretas.
Saiba mais
A ONU, que estabeleceu 2 de abril como Dia Mundial de Conscientização do Autismo, afirma haver cerca de 70 milhões de autistas no mundo.
No Brasil, não há estatísticas oficiais, mas se estima que 2 milhões de pessoas estejam no espectro autista.
Assim como cada criança autista é única, as causas que levam a essa desordem neurológica também são únicas, podendo haver uma ou várias associações.