A primeira vez que Lelah Monteiro foi ao apartamento do homem que, anos depois, viria a se tornar seu marido, as estantes abarrotadas de livros e discos causaram nela certo deslumbramento. E a atmosfera de intelectualidade ia para muito além das aparências, sendo reforçada pelo dinamismo da conversa que tiveram naquela noite, quando, saltando entre tópicos, construíam juntos reflexões e raciocínios. A inteligência do pretendente saltava aos olhos. Agora, ao repassar aquele encontro na memória, a psicanalista e sexóloga clínica não tem dúvida de que o atributo foi fundamental para que ela se apaixonasse por ele.
“Posso dizer que eu também sou uma sapiossexual”, reconheceu Lelah ainda nos primeiros minutos da entrevista em que discorreu justamente sobre características desse grupo de pessoas para o qual uma “mente incisiva, inquisitiva, perspicaz e irreverente” é mais sedutora que qualquer outra qualidade de um indivíduo. Diga-se, esse conjunto de qualidades do intelecto foi citado pela primeira vez como motivo de atração sexual e afetiva em 1998, quando o engenheiro Darren Stalder, de Seattle, nos Estados Unidos, cravou o termo “sapiossexual” em uma tentativa de descrever que tipo de parcerias românticas lhe interessavam. “Quero alguém que considere uma discussão filosófica como preliminar”, resumiu o norte-americano. Cerca de 15 anos depois, em 2014, a expressão começou a ganhar tração, tornando-se popular após o site de relacionamentos OkCupid listar a característica entre as opções de orientação sexual com que os usuários poderiam se identificar. Hoje, contudo, estudiosos da sexualidade humana discordam dessa classificação.
“Não estamos falando de uma orientação, mas sim de uma característica, de uma forma de identificação”, assinala Lelah, pontuando que esta é uma dimensão do desejo que vai conviver com outros aspectos da identidade romântica e sexual de uma pessoa. Trata-se, portanto, de mais uma camada da individualidade, que não anula outros aspectos da composição do sujeito. Em outras palavras, pode-se ser assexual, bissexual, heterossexual ou homossexual e, ao mesmo tempo, ser sapiossexual. Além disso, esse direcionamento do desejo não é algo estático, mas fluido. “A pessoa pode, em certa circunstância, em certo momento da vida dela, ser mais atraída pela inteligência do que por outra qualidade. Mas isso pode se modificar com o tempo, e o intelecto pode deixar de ser um atrativo tão prioritário em algumas situações. O que é interessante nesse debate é que podemos conhecer melhor um traço de nós mesmos que podemos explorar”, argumenta a sexóloga.
No mesmo sentido, o psicólogo e terapeuta sexual Erick Paixão pondera que é preciso cuidado para, ao se identificar conforme certa classificação, não se fechar em copas para outras experiências. “O que mais me preocupa e incomoda nesse ímpeto de nomear cada prática é o risco de separar grupos, como se as pessoas estivessem em caixinhas, muito bem departamentalizadas. Quando a pessoa diz que ela é assim, e ponto, ela propõe para si uma limitação de possibilidades de interação, de ter novos tipos de relação, quando, na verdade, sabemos que o ser humano não é estático, mas sim dinâmico”, critica.
De sapiossexual, (quase) todo mundo tem um pouco
No caso de pessoas sapiossexuais, que, segundo estimativas, somam 8% da população, a inteligência é a característica mais sedutora que alguém pode ostentar. E é essa exclusividade e supervalorização do atributo intelectual o que diferencia o grupo – que tende a desconsiderar outras qualidades – de outros indivíduos que prestigiam a sapiência do outro, mas que também consideram atraentes outras características, como determinado porte físico ou aquele mesmo certo tom de voz.
Aliás, a julgar por estudos sobre aspectos mais buscados em um relacionamento amoroso, dá para dizer que de sapiossexual todo mundo tem um pouco. Foi o que se constatou em um levantamento realizado por pesquisadores da Universidade da Austrália Ocidental, que ouviu 383 adultos. Segundo os estudiosos, depois da gentileza e compreensão, a inteligência foi a característica mais valorizada pelos entrevistados.
Entretanto, ainda que tão comumente enaltecida, a atração erótica pela sapiência vai depender da subjetividade de cada um. “O que um considera intelectualmente sedutor, outro pode não considerar. Então não estamos falando necessariamente sobre ter um Quociente de Inteligência (QI) alto, mas de esse investimento do intelecto estar combinado com áreas de interesse comuns”, analisa Erick Paixão. Trocando em miúdos, o terapeuta explica que um sapiossexual pode não se atrair por um gênio da aritmética e até mesmo achar seu papo enfadonho se este é um assunto que não o afeta.
Por trás do desejo. “Do ponto de vista da psicologia evolutiva, acredito que a intenção de se relacionar com alguém inteligente pode estar associada à sensação de segurança e de prosperidade que esse tipo de troca traz. A impressão que se tem é que esse sujeito saberá resolver problemas. E isso torna esses pretendentes mais interessantes, criando a falsa expectativa de se estar em uma relação mais segura”, argumenta Erick Paixão. “Algumas pessoas chegam a verbalizar a expectativa de que, relacionando com indivíduos inteligentes, seus filhos também serão dotados de uma inteligência incomum”, complementa Lelah Monteiro, no rastro de uma explicação evolucionista do fenômeno.
Os dois especialistas concordam que a valorização cultural de mentes brilhantes é um fator que contribui para tal direcionamento do desejo. E, do ponto de vista psicanalítico, a sexóloga pondera que essa particularidade pode denunciar um sentido de “castração”, para citar um termo freudiano. “Será que não está havendo um deslocamento da libido? Será que a pessoa não está se impedindo, talvez por razões morais, de desejar o outro por outros aspectos, que poderiam soar menos nobres?”, questiona Lelah.
Gênero. Alguns estudos apontam que o índice de mulheres sapiossexuais é maior que o de homens, o que pode sugerir um recorte de gênero da característica. Para alguns, explicaria essa discrepância o fato de eles demandarem maior apelo visual para se sentirem excitados, mas tampouco essa tese é consensual entre especialistas.
Problema. Estudiosos ainda alertam que, em alguns casos, a sapiossexualidade pode ser instrumentalizada como um pretexto para a discriminação. É o que ocorre quando uma pessoa busca parcerias amorosas sob o crivo dos títulos acadêmicos do outro, ignorando que a inteligência possui diversas formas de manifestação – o que pode apenas esconder um preconceito de classe, por exemplo.