Homens que foram denunciados por mulheres poderão ter que cumprir medida protetiva que estabelece a participação em centros de educação e reabilitação psicossocial antes mesmo do término do processo, conforme previa até então a Lei Maria da Penha (2006). Essa alteração foi aprovada, no início do mês, pelo Plenário do Senado e só depende agora de sanção presidencial.
Em 2019, 16 mulheres foram vítimas de feminicídio em Belo Horizonte e 136 em Minas Gerais. Cerca de 18 mil sofreram algum tipo de violência doméstica e familiar na capital mineira e mais de 148 mil no Estado. Sem caráter de lei como o projeto (PL 5.001/2016) proposto e aprovado pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, um programa da Polícia Civil de Minas Gerais criado em 2013 atua nesse sentido, estimulando o diálogo como forma de prevenção à violência doméstica.
No Dialogar, grupos com dez participantes, em média, de variadas idades e profissões, respondem a processo judicial. Eles participam de oito encontros, de cerca de duas horas. “É um trabalho de oficinas de reflexão e responsabilização do homem ou da mulher encaminhado (a) pela Justiça com o intuito de promover a desconstrução da violência”, explica a psicóloga Regina Sales.
Segundo ela, muitos participantes chegam com uma visão deturpada da Lei Maria da Penha. Por isso, nas reuniões, são discutidos temas como o machismo, os relacionamentos, a comunicação e a própria lei. “Muitos não sabem o que estão fazendo aqui e acreditam que a violência é só física, mas a Lei Maria da Penha compreende cinco tipos de violência: psicológica, moral, sexual, física e patrimonial”, diz.
Ao todo, já foram atendidas 799 pessoas (22 mulheres e 777 homens), e a taxa de reincidência é de apenas 6,5%, segundo a delegada Isabella Franca Oliveira, da Divisão Especializada em Atendimento à Mulher, ao Idoso e à Pessoa com Deficiência e Vítimas de Intolerância (Demid). “Atualmente, o programa é realizado apenas em BH, mas é possível que, com a aprovação desse PL, haja a possibilidade de expansão para outras comarcas por ser um projeto muito exitoso. Acredito que essa ampliação seria uma importante ferramenta no combate à violência”, afirma Isabella.
Para os homens, a aceitação da medida e da lei ainda é um desafio, e muitos demonstram resistência. “A gente é obrigado a vir aqui e pronto. Para várias mulheres tem que acontecer mesmo, mas tem que ser apurado porque algumas estão fazendo uso em causa própria”, disse um dos participantes. Já outro reconhece que a Lei precisa de ajustes, mas assume o erro. “Ela me denunciou pela última conversa que tivemos pelo WhatsApp. Eu errei em certas palavras, pelo calor do momento. A gente sempre tem algo para aprender”, disse.
‘Recebemos garotas de 15 anos já sofrendo violência do namorado’
A antecipação dos trabalhos com agressores nos centros de educação e reabilitação psicossocial é vista como benéfica por associações e ONGs de apoio a mulheres vítimas de violência.
“Certamente, trará muitos benefícios no enfrentamento à violência contra a mulher. A medida poderá alcançar um número maior e mais significativo de autores de violência, para que repensem seus comportamentos, pensamentos e desconstruam aspectos estritamente nocivos da cultura machista que foram ensinados e incentivados a praticar durante anos. A partir desse trabalho, a sociedade como um todo tende a se beneficiar com cidadãos mais conscientes”, afirma a psicóloga Vanessa Molina, porta-voz da Associação Fala Mulher.
Segundo ela, é necessário “perceber que o combate à violência contra a mulher deve ir além do atendimento à vítima. É preciso ultrapassar as barreiras do preconceito e de culpabilização da vítima e ainda considerar a atuação também do outro lado, com agressor, para entender todo o fenômeno”, explica.
O Instituto Filhas de Sara também desenvolve ações para coibir a violência doméstica e defende que trabalhar com o homem na modificação dos padrões socioculturais do machismo é também resguardar a integridade física e psíquica da mulher.
“É essencial. Tem que trabalhar os dois lados. A mulher em determinado momento é colocada como vítima, mas o agressor também pode ser vítima desse comportamento social em nosso contexto, além de ter sofrido violência domiciliar. O problema não é fácil de resolver. Tem a ver com uma mudança de comportamento que não se consegue de um dia para o outro. A lei só responsabiliza o homem pelo ato, mas não é capaz nela mesma de trazer essa transformação social”, reconhece a assistente social e coordenadora do Instituto Filhas de Sara, Cláudia Helena de Oliveira.
Para ela, outros desafios compõem esse cenário de enfrentamento da violência e do feminicídio no Brasil. “Tudo passa pela sensibilização por meio da educação. Eu acredito que as escolas deveriam ser obrigadas e incluir no currículo uma matéria que aborde esse assunto. A violência doméstica não é discutida no âmbito escolar como deveria ser. Recebemos adolescentes de 15 anos já sofrendo violência do namorado”, afirma.
“As prisões por si só não dão conta de ressocializar e reintegrar agressores”
Projetos de lei como o PL 5.001/2016 evidenciam cada vez mais que as prisões por si só não dão conta de ressocializar e reintegrar agressores. Segundo o presidente e diretor da ProMundo, Miguel Fontes, “as ações meramente punitivas não são suficientes para a ressocialização e a reintegração de agressores”. A ProMundo é uma organização não governamental que atua em diversos países do mundo buscando promover a igualdade de gênero e a prevenção da violência. Fontes avalia que, nesse caso, a lei vai na direção correta, “oferecendo uma oportunidade para que o homem, que já está se utilizando da violência, possa refletir sobre esses comportamentos”.
Leia a entrevista completa com ele na edição do Interessa do jornal O TEMPO desta segunda (17).