Apaixonada pelo lugar em que vive, a belo-horizontina Camila Pinho, 23, se tornou referência para o ciclo de amizades por devotar um olhar de encanto para os locais por onde passa. “É uma relação diferente, porque eu não uso as ruas apenas para transitar. Este é um espaço em que eu encontro pessoas, em que eu observo a paisagem. É um componente de vida. E, por circular muito, acabo sendo aquela pessoa que tem todas as dicas. Sei onde estão as lojas de miudezas ou a costureira barateira”, observa. Mas a interação com a capital mineira nem sempre foi tão amistosa. “Há dez anos, se a gente tivesse essa conversa, eu certamente diria que detestava Belo Horizonte e que queria ir embora daqui o mais rápido possível. Hoje, o que sinto é exatamente o oposto disso. Eu até costumo dizer que BH é a mulher da minha vida”, relata a estudante de museologia.
Camila explica que essa radical mudança de percepção acompanhou um crescente movimento de ocupação cultural da capital, freado pela pandemia da Covid-19. “Esse sentimento de amor pela cidade começou a aparecer para mim aos 16 anos, quando começaram a acontecer eventos e manifestações que mexiam comigo e com os meus, como o Carnaval de rua e a Praia da Estação. Quando eu via as pessoas à minha volta felizes, celebrando, esse vínculo com a cidade se tornava mais forte, e a sensação de pertencimento aumentava”, reconhece, acrescentando que essa mudança de perspectiva tem gerado nela ganhos de bem-estar físico e emocional.
“Se antes sair do Prado (bairro na zona Oeste de BH) para ir ao Funcionários (na região Centro-Sul) era motivo de resmungo e preguiça, agora, na maioria das vezes, encaro a tarefa com bom humor, com satisfação”, observa, citando que geralmente cumpre seus itinerários sobre uma bicicleta. “Eu às vezes comento com as pessoas que ir e voltar do meu trabalho de bike melhorou muito minha disposição, elevou meus níveis de serotonina”, brinca, fazendo referência ao fato de atividades físicas levarem a um aumento da produção desse neurotransmissor, que está associado à sensação de bem-estar e que ajuda a reduzir o estresse. “E isso acontece não só por eu estar andando de bicicleta, mas por tudo o que eu vejo. Nesses momentos, sinto como se fosse uma tela de cinema, tendo como cenário a minha própria cidade”, salienta.
À luz das análises de Reginaldo Gonçalves, professor do Departamento de Esportes da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Minas Gerais (EEFFTO-UFMG), as observações de Camila fazem todo sentido. Ele avalia que a mobilidade ativa, isto é, o ato de cumprir trajetos a pé ou de bicicleta, pode gerar diversos ganhos para a saúde.
“No caso da caminhada, sabemos que o risco é muito baixo em comparação aos benefícios que essa atividade proporciona. É bom lembrar também que este é um tipo de exercício que pode fazer parte da rotina da maioria esmagadora da população, só sendo contraindicada em casos muito específicos”, diz. A prática ajuda no controle da pressão arterial e do colesterol, além de atuar reduzindo os níveis de estresse e de ansiedade. “Também sabemos que idosos que caminham com frequência têm perda cognitiva reduzida, sofrendo menores efeitos de perda de memória, por exemplo”, pontua.
Gonçalves destaca que ter uma boa relação com o meio em que se vive está diretamente associado à disposição de adesão à mobilidade ativa e a outras práticas esportivas ao ar livre. “Sabemos que, de um lado, há pessoas que, sabendo da importância de se manter uma rotina ativa, forçam-se a fazer atividades mesmo em locais que não consideram agradáveis ou mesmo apropriados, e, de outro, há quem, mesmo sem pensar nos ganhos para a saúde, faz exercícios simplesmente por se sentir bem, caso de quem sai para passear e acaba, por tabela, se exercitando”, expõe, avaliando que, nesse segundo caso, maiores são as chances de o sujeito aderir efetivamente a uma rotina de atividades físicas. “Atualmente, o grande desafio para se vencer o sedentarismo é justamente essa aderência, que vai ser mais automática para quem sente que está frequentando um espaço agradável”, admite.
Olhar de turista. Lucas Cardoso, 26, se identifica com esse segundo grupo. Embora saiba a importância de uma rotina ativa, o que o move a percorrer longos itinerários a pé, lançando-se à deriva pelas ruas, é o amor pela cidade. Nascido em Moema, na região Centro-Oeste de Minas, ele mudou-se para a capital mineira pela primeira vez aos 9 anos. “Fiquei até completar 11. Depois voltei para o interior, onde fiquei até me formar no ensino médio. Aos 17, voltei para ficar”, comenta, garantindo que, desde aquela primeira ocasião, forjou vínculos significativos com a urbe. “Foi aqui que eu me encontrei”, celebra.
O bacharel em direito lembra que BH, como outras capitais e grandes centros urbanos, costuma ser buscada por ser vista como um lugar de oportunidades. “Mas, com isso, há mais pressão”, pondera. “E, por isso, ter uma boa relação com a cidade faz toda a diferença. Para mim, conhecer e explorar a cidade traz calmaria, algo que me faz não pensar em trabalho, em obrigações o tempo todo. Às vezes, se quero pensar na vida, vou caminhar. Vou, por exemplo, de onde moro, no centro, até a praça do Papa”, cita. O segredo para tanta disposição está justamente em sua capacidade de saborear os trajetos.
“Noto que eu preservo um olhar de turista para o lugar que eu moro. E a pandemia reforçou isso. Afinal, estávamos com restrições de viagens, de modo que não havia muita opção a não ser curtir aquilo que tínhamos por perto”, diz. “Isso me fez entender que o caminho para o trabalho não é só o caminho para o trabalho, que o caminho para a padaria não é só o caminho para a padaria. Comecei a perceber que havia história nesses lugares e, a partir dessa compreensão, passei a amar ainda mais essa cidade. Não estou aqui só para ganhar dinheiro, mas porque gosto desse lugar”, sustenta.
Lugar de encontro
O arquiteto e urbanista Sérgio Myssior, membro do movimento A BH que Queremos, saúda perspectivas como as de Camila Pinho e Lucas Cardoso. Para ele, uma interação mais próxima com o meio urbano tende a potencializar o desenvolvimento de um território. E, portanto, é fundamental que a administração pública crie um ambiente mais acolhedor para esse movimento de ocupação da urbe.
“A cidade é o lugar do encontro. E não só do encontro de pessoas, mas também do encontro de ideias, de negócios, de oportunidades”, define o estudioso, lembrando que tanto o conteúdo tangível, como as praças e os parques, quanto o intangível, como a sensação de segurança e de pertencimento, favorecem essa ocupação. “Em resumo, podemos dizer que há o território e há a forma como ele é absorvido pela comunidade. Portanto, não é suficiente inaugurar novos equipamentos, sendo necessário investir em uma gestão integrada, que vai estimular o uso desses espaços”, observa.
Com equipamentos relativamente próximos e democraticamente ocupados, o urbanista destaca que “a rua voltará a ter sua importância, porque vai virar um lugar de encontro”. E, com isso, diversos ganhos socioculturais, ambientais e econômicos tendem a ser percebidos. “É importante lembrar que conhecimento e inovação estão ligados ao encontro de pessoas e ideias nos espaços de convívio”, diz, citando que o próprio comércio floresce nesse ambiente. A cidadania ativa, frisa Myssior, é outro aspecto acessado a partir de uma boa relação com a cidade. “Um indivíduo que usa um equipamento público vai se preocupar em preservá-lo”, exemplifica.
Por outro lado, se esse processo não ocorre e o espaço público passa a ser entendido apenas como lugar de passagem, as consequências são nefastas. “Nesse caso, o ambiente se torna mais inóspito e perigoso”, assevera.