Sexualidade

Voyeurismo: o prazer de olhar o outro é cada vez menos um tabu

Enquanto festas sexual-fetichistas bombam na internet, nas ruas pessoas relatam sem constrangimento suas experiências com a prática


Publicado em 26 de fevereiro de 2021 | 03:18
 
 
 
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Desde a primeira edição das festas sexual-fetichistas organizadas pelo designer e estudante de medicina Uno Vulpo, 24, e realizadas por videochamada, as vagas são disputadas entre milhares de interessados. Logo na estreia, foram mais de 3.000 inscritos e pelo menos 700 participantes sedentos por assumir, uns, o papel de voyeurs, outros, o de exibicionistas, ou, ainda, por se alternarem entre essas possibilidades. No encontro virtual – que ficou conhecido como “websuruba” e cuja edição mais recente aconteceu neste mês –, um DJ embala as performances explícitas dos mais desinibidos, enquanto os mais tímidos podem até optar por manter suas câmeras desligadas e só observar. “Um casal na casa dos 50 ou 60 anos me escreveu dizendo que eles sempre quiseram ser vistos transando e que ficaram muito satisfeitos em realizar essa fantasia”, conta o organizador. Na plateia, claro, não faltava gente disposta a dar uma espiadinha. 

E se o comportamento voyeurista é não apenas tolerado, como também desejado em espaços como os eventos promovidos pela plataforma Sento Mesmo, criada por Vulpo para debater temas relacionados à sexualidade e ao uso de drogas, pode parecer um tanto surpreendente o fato de que, também nas ruas, o assunto já não seja tratado como um tabu inviolável.

“Você já viveu ou conhece alguém que já tenha vivido uma ou mais experiências de voyeurismo?”. Esta foi a pergunta feita pela reportagem de O TEMPO a pessoas abordadas aleatoriamente – e com algum despudor – na área central de Belo Horizonte. Curiosamente, todos os transeuntes, de idade, gênero e orientação sexual diversos, tinham uma resposta afirmativa para o questionamento. Foi fácil encontrar relatos de quem já recebeu convite para assistir a um casal transando ou mesmo daqueles que relataram que eles próprios é que haviam sido observados. Houve também quem demonstrasse horror ao ato voyeurístico. Porém, até essas pessoas admitiram ter amigos declaradamente adeptos do fetiche.

Mas, afinal, por que tanta gente se sente atraída por essa prática, que parece cada vez menos circunscrita a espaços muito específicos? E o que é, exatamente, o voyeurismo? A sexóloga e educadora sexual Cida Lopes explica tratar-se de um ato fetichista que consiste em observar outras pessoas nuas, seja em contextos não sexualizados – como durante o banho ou quando se está se vestindo ou se despindo – ou em contexto libidinoso – como quando se está fazendo sexo ou se masturbando.

É comum que o voyeur prefira ser ignorado, assistindo àquela cena, que causa nele excitação, de forma aparentemente sorrateira. Portanto, há casos em que esse observador realiza suas fantasias de maneira não consensual, isto é, sem que o outro saiba que está sendo espionado. Nesse caso, o sujeito pode se colocar em situações de risco e pode ser acionado judicialmente a responder por seus atos.

Contudo, dependendo da forma como tudo acontece, a prática pode ser saudável para todas as partes, examina Cida. Um casal pode, por exemplo, assistir a conteúdos eróticos ou se observar por um espelho, que são formas de experimentar esse olhar voyeur, comenta a sexóloga, situando que há ambientes propícios a dar vazão a esse desejo, como casas de swing, shows de strip-tease ou festas virtuais como as da plataforma Sento Mesmo.

Universal e atemporal. De maneira geral, resume Cida Lopes, pode-se dizer que, havendo consensualidade, não há nenhum problema no voyeurismo. E, além do mais, o prazer visual é, em alguma medida, absolutamente comum. Tanto que, se considerarmos que a atitude voyeur está relacionada ao prazer de observar o outro, a verdade é que todos carregam essa característica consigo, em maior ou menor escala.

Em “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, Sigmund Freud (1905-1980) observa que o ato de olhar – a escopofilia – não está circunscrito a uma fase, porque “o escopismo está sempre presente; ele é atemporal”. O pai da psicanálise ainda sinaliza, falando sobre as funções de olhar e tocar, que “a impressão visual continua a ser o caminho mais frequente pelo qual se desperta a excitação libidinosa”.

Quando a prática se torna um problema

“O voyeurismo ainda é classificado como um transtorno quando é algo que traz prejuízo para a própria pessoa, para o outro com o qual se relaciona e/ou para terceiros”, avalia Cida Lopes, completando que a prática vai se tornar problemática quando afetar, por exemplo, o dia a dia, as relações interpessoais e a rotina de trabalho do indivíduo. “A pessoa sente que saiu do controle, que não consegue mais controlar aquela pulsão, aquele desejo, se colocando em situações adversas, inclusive de perigo”, explica.

Na clínica, a sexóloga diz que o voyeurismo só costuma aparecer como um tema quando há algum tipo de pressão externa. “Se a pessoa está em seu quarto, usando binóculos e espiando o vizinho sem que ele saiba e sem ser percebido, a pauta não aparece. Mas, se a pessoa é flagrada observando o outro, tende a ficar mais preocupada em controlar aquele comportamento, e por isso pode buscar um tratamento”, avalia.

Ela adverte que é preciso desejo real e legítimo do paciente de retrabalhar esses hábitos. “Não adianta só que o sujeito se sinta pressionado. Ele precisa desejar rever essa prática e readequá-la, de forma que não cause prejuízos aos outros”, diz.

O que diz a lei. A advogada criminal Isabela Cardoso expõe que, embora a Constituição Federal garanta a inviolabilidade da intimidade e da vida privada na seara criminal, não há um tipo penal específico em que a prática se enquadre. “Se a pessoa só observa, mas não registra aquela cena, ela pode responder apenas na esfera cível”, detalha, informando que o sujeito observado pode requerer, do autor do ato, indenização por dano moral.

“Mas, se o voyeur fizer fotos ou vídeos do outro, ele está cometendo crime de exposição da intimidade sexual, previsto no artigo 216 B”, acrescenta. No caso, a pena será de seis meses a um ano de detenção, mas pode ser convertida em multa. “Se a pessoa tiver registrado cena de nudez de criança ou adolescente, a pena vai ser maior, de quatro a oito anos”, conclui Isabela.

Banalização. A sexóloga Cida Lopes acredita que o advento da internet como um todo e das redes sociais em especial ajudam a explicar o porquê de, hoje, se falar mais abertamente do assunto, que está longe de ser uma novidade. “Hoje, o voyeurismo se tornou mais fácil. Uma pessoa pode acessar sites em que modelos vão se exibir em videochamadas, por exemplo. E, com essa facilidade, o tema tem até mesmo se banalizado”, pontua.

 

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