Drama

Mortos no presídio em Goiás não pertenciam a facções

Levantamento mostra como jovens pobres de periferia viciados em drogas encontraram seu fim

Dom, 14/01/18 - 02h00

GOIÂNIA. Dentro de um ônibus em Goiânia, numa linha sempre apinhada, David simulou ter uma faca embaixo da camiseta – era um maço de cigarros. Acompanhado de um amigo, o rapaz de 19 anos abordou um passageiro, ameaçou cortá-lo e roubou um celular de R$ 900. Objetos roubados eram convertidos em pedras de crack. Naquele dia, 24 de agosto de 2017, David foi preso em flagrante.

A denúncia do Ministério Público foi protocolada dez dias depois. A prisão preventiva, decretada no mesmo mês. A Justiça condenou David a cinco anos e quatro meses de prisão, em outubro. Em 20 de novembro, quando já cumpria pena num centro de detenção de prisão provisória, ele ingressou na Colônia Agroindustrial do Complexo Penal de Aparecida de Goiânia.

O presídio é uma unidade de regime semiaberto onde uma rebelião e uma carnificina no primeiro dia do ano voltaram a expor o caos – e a face medieval – do sistema prisional brasileiro. David de Oliveira Borges foi um dos nove detentos mortos na rebelião. A causa da morte: carbonização, às 16h40 de 1º de janeiro de 2018, dentro da Colônia Agroindustrial, como consta na certidão de óbito. O jovem morreu queimado dentro de um prédio administrado pelo Estado.

“Ele morava comigo, e danou a fazer trem errado no mundo por causa do crack. O crack ninguém segura. Eu tirei CPF, identidade, carteira de trabalho para o meu filho, mas ele perdeu tudo”, diz João Bezerra da Silva, 67, pai de David, morador de um conjunto habitacional pobre em Senador Canedo, cidade a 20 km de Goiânia.

Pesquisa. A reportagem de “O Globo” consultou na 1ª e na 2ª Varas de Execução Penal (VEPs), em Goiânia, os processos de cinco dos nove presos mortos. Dois foram decapitados, e os corpos da maioria foram carbonizados. São esses processos que levaram os detentos a estarem dentro da Colônia Agroindustrial na tarde do primeiro dia do ano. Os cinco casos guardam semelhanças e lançam luz sobre quem morre numa rebelião num presídio brasileiro.

Dois processos não foram consultados porque não foram localizados em razão de uma inspeção do Conselho Nacional de Justiça nas duas VEPs. A identificação da oitava vítima só ocorreu depois de a reportagem consultar os autos nas varas. O nono preso não havia sido identificado até o fechamento desta edição.

Versões. O governo de Goiás atribuiu a rebelião a briga entre as facções criminosas. Porém, nenhum dos documentos que constam nos cinco processos, produzidos pelo Ministério Público e pela Justiça, registra o pertencimento desses presos a alguma facção. Isso indicaria que, se houve uma aproximação, ela ocorreu dentro dos presídios.

Acusações de roubo levaram David; Ravel Nery de Amorim, 20; Pablo Henrique Alves Silva, 21; Aryel Alves Martins Pena, 23; e Fernando Sousa Pimenta, 37, para a prisão. O patrimônio roubado era de pequeno porte, conforme as denúncias do MP: celulares; de R$ 40 a R$ 2.000 em espécie; camisa do Goiás Esporte Clube, correntes de prata, anéis de ouro, bonés ou uma bermuda.

Recém-chegados. Os condenados ingressaram na Colônia havia pouco tempo, alguns há menos de dois meses, seja a partir de progressão de pena ou, principalmente, com cumprimento de prisão já no regime semiaberto. A maior sentença, dez anos e seis meses de prisão em regime fechado, foi aplicada a Aryel, condenado por roubo a mão armada e por ameaçar pai e filho dentro de casa. Ele progrediu para o semiaberto.

A mãe de Fernando, Maria de Fátima Sousa, 53, enterrou o filho na terça-feira, dia 9. “O Fernando era mototaxista, transportava um passageiro quando pegaram os pertences da bolsa de uma mulher. O valor dos objetos ali equivalia a 2.000, R$ 3.000. No presídio, não tinha rixa com ninguém. Eu o visitava todo domingo”, diz Maria de Fátima.

Os dois detentos decapitados estavam na ala B, destinada a pessoas doentes. Fernando caiu da moto na fuga do roubo e teve complicações após uma cirurgia na perna. O advogado de Fernando, contratado pela mãe, chegou a pedir, em 15 de dezembro, a concessão do indulto de Natal.

Fernando entrou na Colônia Agroindustrial em 13 de novembro do ano passado. Uma semana depois, chegou David. João Bezerra, pai de David e de outros 11 filhos, que é analfabeto e vive com um salário mínimo, recebeu uma ligação no dia da prisão do jovem. “O delegado me ligou falando para arrumar um advogado. Eu disse que não tinha como sustentar ele aqui. O David chegou a me pedir dinheiro, dizendo que tinha dívida de droga no presídio. O maior tempo que ele ficou numa casa de recuperação foram dois meses. Voltou gordo e forte. Não durou uma semana”.

“Trem errado”

“Ele morava comigo, e danou a fazer trem errado no mundo por causa do crack. O crack ninguém segura. Eu tirei CPF, identidade, carteira de trabalho para o meu filho, mas ele perdeu tudo.”

João Bezerra da Silva

Pai de David, 19, que morreu carbonizado

Choque na porta

“No dia 2 (de janeiro), eu estava na porta do presídio. Uma mulher mostrou a foto de um preso segurando a cabeça decepada de outro. Era a cabeça do meu filho.”

Maria de Fátima Sousa

Mãe de fernando, 37. Ela agora Pensa em processar o Estado

 

Vistoria acha armas brancas e celulares

BRASÍLIA. Uma nova vistoria na Colônia Agroindustrial do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, em Goiás, realizada na última sexta-feira, encontrou 15 armas brancas e 16 celulares, entre outros objetos apreendidos. A inspeção foi determinada pela ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), após uma rebelião ocorrida no dia 1º de janeiro deixar nove mortos.

De acordo com a Secretaria de Segurança de Goiás, foram apreendidos um facão, uma navalha, duas facas e 11 chuchos – uma espécie de arma artesanal –, além de nove barras de ferro e um alicate. Também foram encontrados 16 celulares, oito chips, cinco baterias e dois pendrives, e uma pequena quantidade de drogas.

Cármen Lúcia esteve em Goiânia na segunda-feira, onde se reuniu com autoridades locais para discutir a crise no sistema penitenciário. A ministra planejava visitar o presídio, mas desistiu após ser alertada dos riscos à sua segurança.

Uma outra vistoria no presídio, realizada dois dias após a rebelião, constatou que os agentes penitenciários “não conseguem dominar a cadeia”, e que o motim foi causado por um confronto entre as duas facções criminosas que dominam o presídio.

O diretor geral de Administração Penitenciária, coronel Edson Costa, afirmou que os presos que lideraram a rebelião foram retirados da Colônia, e que será construída uma nova unidade para abrigar os detentos que cumprem pena no regime semiabeto.

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