Resgate

A memória como patrimônio 

Para perpetuar história oral, fotógrafos e cinegrafistas registram depoimentos de belo-horizontinos

Qui, 02/07/15 - 03h00

Houve uma época em que os filmes de bangue-bangue exibidos no Cine Brasil, na capital, deixavam a técnica de luta de braço Soraia de Castro Mantovani com ânimos aflorados. Era o tempo em que o aposentado Roberto Alves de Oliveira também frequentava a praça Sete, onde se juntava com uma turma na portaria do mesmo cinema para trocar gibis de “Zorro” e do “Fantasma”. O transporte era precário e obrigava o músico Mozart Secundino a levantar da cama às 2h para pegar o trem que saía de Betim em direção ao centro de Belo Horizonte. “Eu não saía dos programas de auditório das rádios Guarani e Inconfidência”, comenta, saudoso, o taxista aposentado Robson Isolino.

São momentos longínquos que até então só residiam na memória dessas pessoas. Resgatar essas e outras histórias perdidas no tempo foi o que levou o jornalista Gustavo Nolasco e sua equipe do coletivo Nitro + Alicate a ligarem suas câmeras na praça Sete e gravar depoimentos de belo-horizontinos anônimos. “A memória dessas pessoas é um tesouro, um patrimônio da cidade”, avalia Nolasco, integrante do projeto, intitulado “Moradores – A Humanidade do Patrimônio Histórico”.

A primeira leva de depoimentos foi colhida nesta quarta, em uma tenda que continua montada hoje. Em seguida, a iniciativa vai às praças da Savassi (nesta sexta e sábado) e da Liberdade (dias 7 e 8).

Roteiro

Exposição. Cerca de mil pessoas devem ter histórias documentadas. As imagens serão exibidas por exposição na praça da Liberdade, na região Centro-Sul, entre 21 e 29 deste mês.

Arquivo de lembranças

Quando soube do projeto, o aposentado Roberto Alves de Oliveira, 66, fez questão de levar à praça Sete sua pasta recheada de recortes de jornais e revistas desde a década de 1970, ecos de uma vida atuando como arquivista. Nascido em 1949 no bairro Santo André, na região Noroeste, ele diz que sempre foi interessado pelo “lado marginal” da cidade. “Frequentei a zona boêmia da Lagoinha e convivi com figuras como Blecaute, Hilda Furacão, Maria Tomba-Homem e Cintura Fina, de quem que tinha muito medo”, diz. Hoje morador do Barreiro, é dos cinemas de bairro que Oliveira mais sente falta. “Quando fui assistir ao Exorcista no Cine Tupi, a fila rodava o quarteirão”.

De Betim à era do rádio

O semblante discreto de Mozart Secundino não dá ideia de quantas cenas memoráveis o músico de 92 anos viveu e testemunhou. Como na década de 1920 a vida em Betim, onde nasceu, era muito difícil, ele se mudou aos 11 anos para a capital, com três irmãos e o pai viúvo. Aos 20 anos, ao ter o primeiro contato com um cavaquinho, engatou a carreira profissional. “Eu ia a pé do Santo Antônio (onde morava) até as casas no Santa Efigênia, porque após meia-noite não havia ônibus”. Mas nada disso foi empecilho para o músico tocar com grandes nomes da era do rádio, como Orlando Silva, Silvio Caldas, Clara Nunes e Nelson Gonçalves. “As pessoas brigavam nas bilheterias para assistir às apresentações”.

Serestas de Noel

Quando o jornalista Carlos Felipe Horta era criança, na década de 1940, já lhe contavam a saborosa história de que o compositor Noel Rosa, ao vir a Belo Horizonte tratar uma tuberculose, curava seus porres com serestas que invadiam as madrugadas. “A cidade atualmente tem lei demais, proibição demais”, compara. Com emoção, ele lembra o dia em que o Atlético sagrou-se campeão brasileiro pela primeira vez, em 1971. “Naquele dia, os jogadores desceram no Aeroporto da Pampulha, e a avenida Antônio Carlos virou um mar de gente. Até cruzeirense virou atleticano”, brinca o jornalista, que tem passagem por grandes jornais da época e jura não ter time de preferência.

Curral que encanta

Ao chegar, em 1978, de Taiobeiras, no Norte do Estado, e descer na rodoviária de Belo Horizonte, então uma cidade pacata, a desempregada Estela Rufino olhou para a avenida Afonso Pena e não teve dúvidas de que esse era o lugar em que queria passar o resto de seus dias. A vista da serra do Curral foi o que mais a encantou. Hoje, aos 54 anos, ela é uma voraz consumidora do cardápio cultural da cidade, mas sofre com o transporte público. “Não consigo ir a eventos que gostaria porque o ônibus que me leva ao metrô demora muito. Ir de carro também não dá, porque não há vaga para parar e estacionamento privado é caro”, reclama. “A acomodação do mineiro me aborrece”, completa.

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