São poucos os trechos de asfalto ainda intactos na rua Marília de Dirceu, no Lourdes, após o forte temporal que atingiu a região Centro-Sul de Belo Horizonte na noite dessa terça-feira (28).
Arrancadas do chão, as placas estão jogadas umas sobre as outras e até sobre o passeio, há buracos gigantescos em toda a extensão da rua e os carros capotados e batidos relembram o cenário apocalíptico acontecido na noite passada.
Vídeos e imagens que circulam nas redes sociais mostram uma parte do estrago: clientes de restaurantes na região ficaram ilhados, os veículos foram arrastados pela forte correnteza e a água chegou a invadir prédios residenciais no Lourdes.
A muitos moradores de Belo Horizonte a súbita enchente e os alagamentos nas regiões Centro-Sul e Central da cidade podem ter causado certo espanto.
No entanto, arquitetos, médicos e urbanistas e ambientalistas há muito já alertavam para a possibilidade de todo o município ser tomado por fortes correntezas de água. O processo de urbanização desenfreado da capital mineira está nas raízes do problema.
A situação na rua Marília de Dirceu está entre aquelas que causou maior susto aos moradores da cidade. A explicação para as placas de asfalto terem sido arrancadas, os carros arrastados e o trecho próximo à praça engolido pela água pode ser, pelo contrário, mais simples que parece. A solução, por sua vez, apresenta-se mais complicada.
Entenda o passo-a-passo do que aconteceu na rua Marília de Dirceu:
Volume de chuvas na região Centro-Sul: as primeiras gotas de chuva caíram sobre os bairros Lourdes, São Bento, Santa Lúcia, Cidade Jardim e Belvedere em torno de 19h. Ao todo, em apenas três horas e dez minutos, choveu cerca de 180 milímetros em toda a região.
Córrego do Leitão: entre o bairro Belvedere, a rua São Paulo e a avenida Augusto de Lima está o córrego do Leitão. Com o processo de urbanização de Belo Horizonte e canalização dos rios que cortam a cidade, o córrego foi escondido debaixo do asfalto. Apesar de não parecer, ele passa nas principais ruas da região Centro-Sul de BH, entre eles a Marília de Dirceu.
"O córrego do Leitão nasce ali no Belvedere, passa pelo São Bento, recebe água de todos os barrancos da direita da avenida Raja Gabáglia, vai até o Santa Lúcia, passa pela avenida Prudente de Morais, pela rua Marília de Dirceu, pela rua São Paulo, pela avenida Augusto de Lima e corre em direção à avenida Amazonas. Ele cai ali pelos lados da avenida Bias Fortes e sai no ribeirão Arrudas", explica Apolo Heringer Lisboa, ele é fundador e idealizador do projeto Manuelzão, ambientalista e professor da UFMG.
Vazão acima da suportada: somando os equívocos no projeto urbanístico da cidade ao intenso acumulado de chuva no decorrer das três horas de terça-feira (29), a canalização do córrego não suportou o volume de água.
A rápida elevação no nível de água do córrego criou uma intensa força cinética embaixo do asfalto na rua Marília de Dirceu. Com a água precisando extravasar, o asfalto foi empurrado e, por isso, rachou.
"Essa destruição (que acontece na rua Marília de Dirceu) significa (que aconteceu) uma grande energia de baixo para cima e nas laterais, empurrando a terra, empurrando as estruturas e rachando tudo", esclarece o professor.
Barragem Santa Lúcia: instalada na avenida Arthur Bernardes, a barragem Santa Lúcia figura como uma boa solução para o problema da vazão do córrego do Leitão em Belo Horizonte. No entanto, são necessárias ainda outras soluções para que o problema seja resolvido de forma definitiva.
Leia a explicação do professor:
"A barragem Santa Lúcia foi toda assoreada com a construção urbana na região feita de forma errada, retirando terra, provocando erosão nas montanhas. Mas, a prefeitura criou aquela barragem de uma forma diferente, o excedente da chuva fica contido ali. Foi uma boa solução, só que isso não faz milagre, ela está subdimensionada. Mas não é para aumentá-la. Para resolver, você tem que pegar as nascentes do Leitão no Belvedere. Já existe a Lagoa Seca, perto BH Shopping, mas ela precisa ser melhorada, está um horror. Ela precisa cumprir sua função de reter água por algumas horas. É preciso criar mini contenções para que a água (da chuva) seja contida nas cabeceiras, você não consegue controlar a água quando ela já adquiriu grande energia".
Origem do problema
Os problemas enfrentados pela população de Belo Horizonte, hoje, em relação às chuvas começaram há muitas décadas, ainda no período de formação urbanística da cidade.
"Com a construção dos bairros, a prefeitura permitiu a retirada de 100, 200 caminhões de terra. As montanhas tinham que ser preservadas, as casas tinham que ter sido construídas respeitando a topografia. Toda a terra que foi retirada ali, milhões de toneladas, fazem falta hoje, ela servia para reservar a água. Foram canalizando os córregos e priorizando as vias para automóveis. A chuva forte expôs a fragilidade da concepção de gestão das águas em BH. Nós precisamos de des-drenagem urbana. O que aconteceu na (rua) Marília de Dirceu e na (avenida) Prudente de Morais é que a água da chuva implodiu e explodiu", explica Heringer Lisboa.
Existe solução?
Segundo o fundador do projeto Manuelzão – referência na luta por melhorias nas condições ambientais –, o necessário neste momento é repensar a relação humana com a cidade e ainda formas de reconstrução da capital mineira.
"As obras feitas estão baseadas no princípio errado de gestão urbana, que levou a impermeabilizar o solo das ruas, os telhados, os quintais com cimento, a calha que tira água do telhado. Essa política de drenagem que está errada. A chuva é um princípio universal. A engenharia ambiental precisa ser a relação amigável de convivência com a natureza e a cidade".