A cura

Com chuva,  Ângela foi 'curada'

Ela derramou sobre os seus aquilo que tinha de melhor; agora, olhamos o céu para 'encontrá-la'

Qui, 28/07/16 - 03h00
Na hora do enterro, no cemitério da Paz, choveu forte | Foto: Moisés Silva/O Tempo

As ruas da cidade estavam vazias, silenciosas, quase tudo fechado. Era dia de paralisação nacional contra as reformas do governo federal. Chovia fraquinho. Ludmila, a filha mais nova, olhava o relógio. Era hora de se despedir e fechar o caixão. Ângela era velada, no Barreiro, fazia 19 horas. Umas cem pessoas já tinham passado por lá. Dois ônibus levaram os parentes para o cemitério da Paz, na Pampulha. Pela última vez, as filhas debruçavam-se sobre o corpo da mãe, duas já tinham passado mal, não se seguravam de pé. O choro delas ecoava na sala.

“Mãe, não me deixa”, implorava Lulu. Ainda hoje, três meses depois, pede para ela voltar. Lá fora, o estranho é que a vida também parecia ter parado, mas por conta da greve, depois seguiria seu rumo normal. A partir daquele dia, as meninas de Ângela teriam que aprender a seguir sem aquela que, mesmo doente, nunca deixou de ser o prumo de cada uma. Desde então, elas elaboram a perda, como parte de um processo que já tinha-se iniciado com as sucessivas pioras da mãe, apesar de isso não ser um raciocínio lógico.

Ver o corpo de Ângela deitado no caixão foi doído, chegava ao fim uma reportagem de intensos sete meses. Eu sabia que sua morte era condição para acabar, mas não havia imaginado essa cena, o tanto que ela significaria. Com Ângela, a morte era algo próximo, palpável, todos os dias. A cada mensagem que eu recebia da filha, às vezes de madrugada, pensava que tinha chegado a hora. A expectativa da equipe médica era que ela morreria em dois ou três meses. Com Deus, ela acordou mais que o dobro disso, negociava a cada despertar. A família acostumara-se tanto com a luta de Ângela que ignorava que um dia ela teria fim, como todos nós – só nos resta escolher pelejar, ou não. Quem conheceu sua história de vida e morte tem o dever de ao menos refletir.

As caretas que ela fazia quando adormecia nos últimos dias dava-nos a dimensão de sua dor. A batalha de Ângela foi contra o câncer, os caroços no único peito, a falta de ar, as fraquezas do corpo, a queda dos cabelos, a voz falhada, mas também contra a pobreza, a injustiça, a violência, o machismo, o descaso. Se houve vitória, ela deu-se no caminho. Foi em cada sorriso que surgia em sua feição até quando já não conseguia mais falar. Foi no carinho recebido por todos a quem ela tratava como filhos, inclusive nós, da reportagem. Foi com os paliativistas cuidadosos que a ampararam na reta final. Foi em cada pedido e desejo que ela teve atendidos até completar sua trajetória.

Cura

Na madrugada da morte dela, eu tinha acordado com o barulho da chuva fina, sendo que havia tempos não nublava em Belo Horizonte. Senti que Ângela estava morrendo e lembrei-me de uma lenda sertaneja que ouvi há pouco mais de um ano: “Quando um espírito de luz vai embora, ele não vira estrela, vira chuva para derramar sobre nós aquilo que ele tem de melhor”. Fiquei na janela, com a mão para fora, sentindo a água de Ângela e tudo que eu tinha vivido com ela em 203 dias. Voltei a dormir e, quando acordei com a ligação de Lulu chorando para me dar a notícia final, estava sonhando com Ângela. No sonho, eu havia ido vê-la no hospital, e ela saía do leito toda de branco, iluminada, não tinha mais a ferida no peito. Eu a abraçava e me ajoelhava no chão, em prantos, de alegria; escreveria sobre o milagre da cura, como desejei desde o princípio.

Mais tarde, na hora real do sepultamento, a chuva engrossou, como se Ângela chorasse por deixar este mundo que ela lutou tanto para ficar, mas lavava as lágrimas daquelas pessoas que se despediam de sua presença física com tanta dor. Naquele instante, dei-me conta de que, finalmente, Ângela estava curada.

Adeus

Na segunda-feira, segui para a casa de Ângela sabendo que já não a encontraria no sofá da sala, sorrindo. Ela estava na cama, fazendo nebulização. Assustou-se quando me viu, pois eu ia às quintas-feiras, e me disse: “Sua reportagem está acabando”. Trocamos agradecimentos, promessas, pedi para ela ser meu anjo e tenho certeza de que ela ajudou-me a escrever este caderno.

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