Pesquisa

De tão rotineira, violência passa a ser algo natural para crianças

Estudo feito com 1.404 jovens de 8 a 17 anos mostrou que maioria convive com ameaças e palmadas

Seg, 10/10/16 - 03h00

A violência urbana põe medo em muita gente grande, mas como será que se sentem as crianças? Poucos param para pensar, mas desde bem pequenas elas escutam a conversa dos pais, o noticiário e já conseguem entender o que acontece ao seu redor. Muitas se tornam vítimas de abusos e assaltos. Uma pesquisa feita pela Organização Não Governamental (ONG) Visão Mundial e pelo Instituto Igarapé mostrou que esse público já nasce com direitos violados e convive com uma educação à base da força física. De tão presente, entretanto, o que não deveria ser normal tende a se naturalizar, e só 1% dos entrevistados se dizem muito inseguros. No país, 69% têm alta percepção de segurança.

O Índice de Segurança da Criança foi coletado entre setembro de 2015 e março deste ano e reuniu 1.404 meninos e meninas de 8 a 17 anos, de 12 municípios brasileiros onde a ONG Visão Mundial atua – a pesquisa não representa o Brasil todo, mas, sim, o grupo pesquisado. Todas as cidades têm altos índices de vulnerabilidade social, o que inclui capitais como Recife e Salvador e localidades pequenas do interior. Em Minas, a única inserida foi Itinga, no Vale do Jequitinhonha, a segunda menor entre as pesquisadas, com 14 mil habitantes.

É em Itinga onde crianças e adolescentes se sentem mais seguros, em comparação com o público das outras localidades pesquisadas. Dos 120 entrevistados lá, 94% se disseram muito seguros, o que supera o índice nacional (69%). Os outros 6% de meninos e meninas de Itinga também se sentem tranquilos, mas em nível “médio”. Nenhuma criança da pequena cidade mineira declarou ter baixa percepção de segurança, o que pode ser chamado de “muito inseguro”, enquanto no Brasil, dos 1.404 pesquisados, 1% se definiu assim (cerca de 14 pessoas).

“Os principais resultados demonstram que as crianças se sentem seguras, ao mesmo tempo em que dizem sofrer violência dentro de casa, na escola e na comunidade. Isso mostra que a percepção da violência é muito invisível por parte delas, é tão rotineiro, tão comum, algo que todo mundo faz, que passa a ser incorporada, naturalizada”, avalia a assessora de Proteção à Infância da ONG Visão Mundial e estudiosa em violência e saúde, Karina Lira.

Ela se refere não só à violência urbana, como assaltos e homicídios, presentes em grandes e pequenas cidades, mas à agressão que começa dentro de casa, com xingamentos, palmadas ou com o trabalho infantil, e se repete na escola e na comunidade onde vivem.

Ciclo. “Se crianças e adolescentes, que representam um terço da população do Brasil e são vulneráveis, não conseguem entender que são vítimas, o ciclo da violência tende a continuar com eles e se reproduzir também na vida interpessoal e futura de cada um”, diz Karina.

O estudo mostra ainda o óbvio: quanto maior a cidade, maior a sensação de insegurança. Recife, Maceió e Salvador tiveram os piores índices entre os lugares analisados na pesquisa.

A casa ainda é o lugar mais protegido – 84% do público infantil se sente sempre seguro no lar. Na comunidade e na escola, esse percentual cai para 62%, e 9% nunca se sentem tranquilos nesses ambientes. A sensação de medo ou segurança não variou entre meninos e meninas, mas, quanto maior a idade, maior a insegurança.

“A gente fala muito de violência pública, mas não fala como ela impacta as crianças. É como se elas não existissem”, avalia a especialista. Karina conclui que, para romper com o ciclo de violência, “é preciso construir o novo”, ou seja, uma educação sem violência. Para isso, o otimismo natural das crianças conta muito: 86% acredita que será feliz quando crescer.

Vulnerabilidade

De janeiro a junho deste ano, 20.456 crianças e adolescentes sofreram violências física, sexual ou psicológica em Minas, sendo 1.897 em Belo Horizonte. A agressão física é a mais comum, seguida da psicológica e do abuso sexual. No mesmo período, 225 vítimas no Estado e 34 na capital morreram por causa de violência.


Brigas

Família também influencia na forma de resolver conflitos

Kléber Gomes de Oliveira tinha 11 anos quando se mudou de um município de 14 mil habitantes para outro com 2,3 milhões. Sem emprego em Itinga, no Vale do Jequitinhonha, os pais foram tentar a vida em Belo Horizonte. Ficaram cinco anos na capital, tempo suficiente para o garoto ser vítima de roubo duas vezes.

“Aqui (em Itinga) nunca vi isso, é bem mais tranquilo”, diz o rapaz, que hoje tem 18 anos. Porém, nas grandes ou nas pequenas cidades, existe uma violência quase invisível, que vai além do assalto à mão armada e também fere os direitos das crianças e dos adolescentes.

O Índice de Segurança da Criança mostra que 63% dos meninos e das meninas pesquisados dizem apanhar quando fazem algo errado em casa. É no ambiente familiar que 40% também afirmam presenciar pessoas que se xingam, e 25%, que se agridem.

“Muitos pais entendem que a educação baseada no castigo físico é a única forma ou a melhor de educar. Se a criança apanha dos pais e acredita que merecia apanhar, ela entende que a forma de resolver conflitos é com violência”, alerta a assessora de Proteção à Infância da Visão Mundial, Karina Lira.

A agressividade se estende para a escola e a comunidade. Oito em cada dez crianças e adolescentes dizem presenciar brigas nesses locais, e três em cada dez já sofreram ameaça, violência física ou verbal. No bairro em que vivem, 15% relatam que “nunca” há espaço seguro para brincar ou passear. Esses números contribuem para que 40% dos entrevistados se sintam inseguros no colégio ou nas ruas.

“Os lugares em que essas crianças passam a maior parte do tempo são a própria casa, a escola e a vizinhança. Se há pontos críticos nesses três locais, quase não sobram oportunidades para lazer e cultura. Existe uma falta de afeto muito importante, o que explica um pouco o porquê da evasão escolar”, completa Karina.

Dentro desse cenário, 89% dos entrevistados dizem sempre se sentir seguro com pessoas da família e menos da metade (40%) diz ter essa mesma sensação na presença da polícia. Segundo a pesquisadora, essa já era uma percepção antes do estudo, mas que precisa ser mudada.

“Preocupa, até porque a PM e os Conselhos Tutelares são os únicos presentes em muitas comunidades”, finaliza a assessora.

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