Terra natal

Desastre impõe exílio sem volta a quem vivia em distritos 

Pesquisador discute o impacto da separação do lar e a importância de um lugar de origem

Dom, 15/11/15 - 03h00

“Igualzinho um tsunâmi. Está invadindo a roça do Camargos, a roça de Adriano. O carro tá lá embaixo. Ó caminhão aqui embaixo, ó! O caminhão do Zezé. Nós estamos acabando de fazer o enterro dele”, narra, ofegante e perplexo o cidadão anônimo por trás da câmera de celular, filmando o momento imediato após o rompimento das barragens da mineradora Samarco (Vale/BHP), em Mariana. Impotente diante da lama que destrói tudo à frente, só resta a ele velar o que se vai e levar a cabo o trabalho de luto, inescapável.

Antes habitado por 600 pessoas, o distrito histórico Bento Rodrigues teve praticamente 90% de suas construções destruídas. Incluindo a igreja do São Bento, a roça do Zé, o bar da Sandra, a cooperativa de geleia de pimenta-biquinho. Abrigados em pousadas e hotéis de Mariana, esses moradores não mais voltarão para casa.

“O caso da catástrofe em Minas é significativo por isso. Diferentemente de casos de exílio temporário ou migração, nos quais os indivíduos cultivam o desejo de voltar, construindo hipóteses de retorno e reinserção na vida comunitária, o cancelamento total, o corte abrupto da vida presente proporcionado pelo mar de lama tóxica, faz com que as vítimas tenham de encarar uma perda irreparável. Uma separação drástica e definitiva, que não lhes dá nenhuma possibilidade de negociação ou assimilação”, comenta Gustavo Silveira Ribeiro, professor da Faculdade de Letras da UFMG.

FOTO: Duke
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Por isso, talvez muita gente se recuse a deixar suas casas, mesmo estas estando ilhadas ou sob forte risco de nova avalanche de lama. “Claro que há também o medo de saques e de mais perdas materiais, mas o gesto de não querer se afastar de sua terra natal pode ser compreendido como resistência ao desconhecido, como temor ao não familiar, como apego desesperado ao imensurável valor simbólico que se deposita no lugar de origem”, destaca.

Segundo Ribeiro, a terra natal costuma ser narrada como segurança. Ela constitui uma referência afetiva e geográfica fundamental para o homem, servindo como ponto de equilíbrio entre ele e a relação que estabelece com o mundo. A impossibilidade completa do retorno à terra natal, então, deixaria incompleta a vivência dos indivíduos afetados. Algo que não se pode precisar, ainda, sobre o futuro dos moradores de Bento Rodrigues. Mas as circunstâncias indicam vidas para sempre mutiladas.

"Tenho saudade da casa inteira"

FOTO: Douglas Magno
Maria Aparecida

 

Ao recordar-se da casa em Bento Rodrigues, onde morava com os filhos e a mãe, Maria Aparecida dos Santos, 57, não elege um cantinho preferido. “Era uma gracinha, uma casa nem de rico, nem de pobre. Tenho saudade de tudo”, diz ao descrever o imóvel de duas salas, quatro quartos, dois banheiros, varanda e um quintal. “Tinha um fogão de lenha, e eu fazia feijoada, galinhada, todo mundo elogiava”. Sobre a vizinhança, mais um orgulho de morar naquele pedaço de terra. “Era um irmão ali, um primo acolá. Tudo uma família”. 

 

Gente humilde

FOTO: Douglas Magno
Romeu Oliveira

“Eu trabalhava dia e noite com um único objetivo: dar uma casa para minha família, dar a eles coisas que faltaram para mim”, diz Romeu Oliveira, 40, após ouvir da mulher, Iracema, como ela e os filhos se orgulhavam do imóvel, em Paracatu de Baixo. “Era uma casinha  de gente humilde. Na frente, uma cerquinha de bambu, um cimentado para não pisar na terra, a varanda, o galinheiro, a horta, onde tinha quiabo, jiló, alface e até cebola”, conta. Ela se lembra ainda do fogão e da sorveteria, construída junto à casa. “Duas bolas custavam R$ 1”. 

 

A pracinha, o barzinho

FOTO: Douglas Magno
Edileia e Marcílio com os filhos

A pracinha, o barzinho, um riozinho, enfim, “um lugarzinho muito bom de se viver”. O uso das palavras sempre no diminutivo, coisa de quem vive  entre as montanhas, ajuda a entender o carinho de Edileia, 38, e Marcílio, 41, por Bento. O filho Gabriel, 10, também reconstrói na memória o amor pelo lugar. “Minha escola não era grande, mas era daquele jeito que eu gostava”. 

 

Casinha azul

FOTO: Douglas Magno
Dona Lia Mol

Dona Lia Mol, 62, respira fundo, tenta se concentrar, mas não evita o choro ao rememorar a vida em Paracatu de Baixo. “Minha casinha era azul, bem perto da igreja, da escola, do campo de futebol. Tinha um barracão no fundo, uma rede na porta da cozinha...”. Mais silêncio e mais lembranças:“E o quintal, cheio de frutas e animais. Era a minha vida”.

Pés de laranja e graviola

FOTO: Douglas Magno
Dona Balduína e seu João Caetano

Dona Balduína Leão, 73, segura forte a bíblia, como se buscasse ali força para falar de como ela e seu João Caetano, 73, viviam até o último dia 5. “Nós nascemos no Paracatu. Nossa casa era pequena, mas tinha assoalho em todos os cômodos e tínhamos tudo. E no quintal tinha pés de laranja e de graviola”, orgulha-se, enquanto abre a bíblia de forma aleatória para ler algo. “Eu faço sempre assim”.

Violão e missa

FOTO: Douglas Magno
Osvaldo Almeida

“Eu gostava era de pegar o violão e tocar na porta de casa, cantar com os amigos”, conta seu Osvaldo Almeida, 72, lembrando ter deixado o instrumento para trás. Sua casa, conta ele, era ladeada pela de dois filhos. “Era uma casa grande com a frente emendada junto com a dos meus meninos. Sabe como é, ‘parede de meia’?”. “Também gostava muito de ir na missa na igreja do Bento”, completa.

Canto de passarinho

FOTO: Douglas Magno
Marlon

O prazer de Marlon, 21, era montar armadilha para pegar passarinho e, depois, com ele na gaiola, andar pelas ruas. “O meu papa-capim tinha o canto mais bonito lá do Bento. Eu gostava de ver o sol nascer com ele cantando. Coisa de roça”, diz, tímido, exibindo uma gravação de áudio no celular com o canto do bichinho. “Não tenho revolta, mas penso na minha mãe. Ela trabalhava para comprar coisas novas para a casa. Tinha até panela elétrica. Ela adorava isso. Eu, pelo menos, consegui salvar um tênis”.

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) As ilustrações foram feitas pelo cartunista Duke com base nas memórias dos moradores.

 

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