Sebastiao Nunes

As sete virtudes do homem vitorioso - segundo intermezzo

Publicado em: Sáb, 05/01/13 - 23h00
Acho que é mais ou menos com essa cara que Rex Stout ficava ao terminar outra de suas delirantes aventuras | Foto: Sandy Noyes/divulgação

Imagine grandes detetives particulares, como Nero Wolfe ou Philip Marlowe, vivendo no Brasil. Ou mesmo um comissário-chefe tipo Jules Maigret. Impossível pensar em Marlowe correndo atrás de pés de chinelo por "US$ 25 diários mais despesas". Nenhum pé de chinelo vale tanto por estas bandas, mesmo com câmbio defasado e o dólar lá embaixo. Também é impossível delirar sobre Maigret envolvido com pequenos traficantes de drogas e assaltantes pobres de mansões de ricos. Seu patamar é outro, seu alvo são assassinos sofisticados e de grande inteligência. Mais uma vez, fora, pés de chinelo!

Quanto a Nero Wolfe, nem pensar! Como só trabalha porque precisa de grana, muita grana, seus honorários são de arrepiar. Se cobrava US$ 100 mil em 1938, você precisa multiplicar esse valor por 16 para obter aproximadamente o valor atual: US$ 1,6 milhão. Para bancar isto, seus clientes brasileiros teriam de ser senadores, deputados federais e alguns empresários - únicos capazes (e talvez dispostos) a desembolsar tanto.

Infelizmente, nossos pilantras são mais espertos do que inteligentes. E Nero Wolfe detesta cliente burro. Como esperteza é a primeira das sete virtudes do homem vitorioso, deixarei o assunto para a próxima semana. Até lá, divagarei.

TRADIÇÃO

Literatura policial de alto nível não faz parte de nossa cultura. Nem poderia. Tivemos alguns arremedos que nunca frutificaram plenamente, exceto Rubem Fonseca, que tangencia o gênero. Parece que recentemente surgiram um ou dois pretendentes a mestre, mas ainda não li nenhum deles. Menos do que tempo, falta-me coragem de embarcar na aventura. Claro que algum dia serei obrigado a encarar seus escritos, por curiosidade. Enquanto isso...

Nossos escroques são principalmente políticos e membros do judiciário. Noticiaram esses dias que 50 prefeitos recém-eleitos estão impedidos de tomar posse por condenação. Volta e meia surge nova denúncia contra figurões do judiciário. Ninguém confia no Congresso (Senado e Câmara no mesmo saco de malandros). Estranho, não é? Logo entre eles, que deveriam dar bons exemplos, frutificam investigações, processos - e nenhuma condenação. O próprio Supremo Tribunal Federal não escapa da desconfiança coletiva, conforme demonstrou recente pesquisa. A população em geral olha de banda para quem ganha fortunas sem mostrar serviço decente. Ninguém pode exigir que bancários, pequenos comerciantes, professores e pedreiros, gente que rala o dia inteiro para sobreviver, feche os olhos a mordomias escandalosas, quando não fraudulentas. Paciência tem limite.

Diante disso, duas coisas se tornam imediatamente impossíveis.
Primeiro, evitar que maus exemplos se espalhem como catapora, de cima para baixo, mesmo só levando ferro quem está na base da pirâmide. Os de cima, com a conivência e a cumplicidade do judiciário (STF incluído), protelam por décadas o desfecho de seus processos, que só terminam - se terminam - quando estão mortos.

Segundo, querer que ótima literatura policial brote de nosso pântano de merda. Ora, por mais ingênuo que seja, o leitor jamais acreditará na condenação de um senador, digamos, ou de um governador, ainda que as provas sejam relevantes e gritantes. Diante desse quadro, só me resta voltar às virtudes dos vitoriosos, não sem antes exibir ao leitor algumas pérolas magistrais, extraídas do recém-relido "Cozinheiros Demais", de Rex Stout.

PÉROLAS

Sobre infância: "Quando era uma menininha, e eu a carregava no colo, era quieta e dissimulada, mas uma garota muito boazinha. Claro, todos os assassinos um dia foram criancinhas, o que parece incrível".

Sobre civilização: "Há centenas de anos, concluiu-se que era impossível a um homem se prevenir contra o assassinato, pois é extremamente fácil matar alguém, de forma que se chegou a um consenso de que os homens devem procurar proteção uns nos outros. Mas, se eu protejo você, você precisa me proteger, goste de mim ou não. Se você não fizer sua parte, estará fora do acordo".

Sobre o conceito de vida: "Você sabe muito bem o que é a vida; a vida é feita de atitudes humanas, e entre elas está um controle decente e inteligente dos apetites que partilhamos com os cachorros.
Um homem não disputa uma carcaça nem late no alto de um morro do crepúsculo ao amanhecer".

Sobre racismo: "Fui prevenido por norte-americanos brancos de que a única forma de conseguir algo dos norte-americanos negros é usando violência, ameaça ou truque".

Idem: "Africanos, urubus ou seja lá o que for, é impossível lidar com eles desse jeito. Eles não pretendem contar nada, ou o teriam feito quando interrogados por aquele delegado de olhos miúdos. Por acaso quer que eu use um chicote no bando todo?".

Ainda: "Pettigrey havia dado um passo à frente, os olhos miúdos soltando faísca. - Não chamamos negro de senhor aqui em West Virginia, e não precisamos que venha gente de fora para nos ensinar!".

GRANDEZA

Como escrevi na última crônica, o livro foi publicado em 1938, quando os negros dos Estados Unidos, como os oprimidos de todo o mundo, tentavam reunir forças para se opor à força brutal que os diminuía como seres humanos. A partir da década 50 deram os primeiros passos - decisivos - para conquistar os direitos que hoje possuem.

Os negros brasileiros - ao contrário - foram mantidos em posição inferior durante 500 anos, e só a partir do governo Lula (e agora com Dilma) começam a se igualar aos brancos, inclusive porque alguns saltos impensáveis até então foram transformados em leis.

Sei que é difícil manter o foco em literatura quando existem tantos temas urgentes exigindo atenção. Assim - e só para concluir -, no que se refere a Rex Stout, é preciso que seja bem lido para ser apreendido em toda a sua grandeza. Como sua leitura exige inteligência, humor e alta dose de refinamento, muita coisa será perdida, caso seja tratado apenas como autor de romances policiais. Nero Wolfe brinca de gato e rato com a inteligência dos clientes, da polícia e dos assassinos que persegue. E com a nossa também.

Em relação a Stout e aos outros dois, mal termino um livro e já estou com saudade. Aí deixo passar algum tempo, pouco tempo, antes de reler, e aprender de novo.

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