BUSCA POR IDENTIDADE

Do IML ao "rio de cima": uma passagem de dois meses

Morte para indígenas é a viagem para um rio sobre o céu, e grupo lutou para vítima ter direito a essa passagem

Dom, 27/03/16 - 03h00
José Januário, assassinado de forma violenta no centro da capital em 15 de janeiro | Foto: ARQUIVO PESSOAL

Para nadar no “rio de cima” (expressão que representa a vida após a morte para algumas etnias), José Januário da Silva, 57, levou tudo o que coube no “latifúndio” localizado na quadra 8A do Cemitério da Paz: chocalho, colares e penas. Não era cova grande, nem cova medida, tampouco a terra que ele queria ver dividida. Mas foi na última segunda-feira, após ficar 67 dias em uma das gavetas da câmara fria do Instituto Médico-Legal (IML) de Belo Horizonte, que ele pôde, enfim, ser exaltado como um representante da tribo Fulni-ô, de Pernambuco, e receber as honras de seus parentes indígenas, como eles se referem uns aos outros.

FOTO: UARLEN VALERIO/ O TEMPO
Instrumentos e artefatos indígenas foram colocados sobre o caixão

Silva foi espancado até a morte no dia 15 de janeiro, na rua 21 de Abril, no centro da capital, enquanto dormia. A ação foi gravada pelas câmeras de segurança de lojas próximas, e as imagens levaram à prisão do suspeito em 11 de fevereiro. Índio, como era conhecido, seria sepultado como indigente por não ter documentos que comprovassem suas origens, mas, se isso acontecesse, lhe seria negado mais um direito: o de recomeçar.

“O rio de cima é para onde o índio vai depois da passagem. É o fim só disso aqui, de uma vida de crueldade e sofrimento, mas, na verdade, é um recomeço. Ele não podia ser enterrado como indigente, porque tinha que estar enfeitado, bonito. Tinha que levar o chocalho, os colares e as penas para fazer artesanato lá”, explica a socióloga Iauaraté Una, da etnia Kambiwá, original de Pernambuco, e integrante do Comitê Mineiro de Apoio à Causa Indígena.

Foi ela que não desistiu de insistir para provar que Índio não era apenas um apelido. Seis idas ao IML não bastaram, só depois que o Ministério Público Federal interveio se expediu a certidão de óbito, em 16 de março. A partir daí, veio o reconhecimento que o libertava da condição de indigente.

FOTO: FERNANDA CARVALHO / O TEMPO
Mais um dia no IML para Iauaraté Una e a advogada Gabriela Rocha

Embora não pudesse ter o caixão aberto para o ritual da passagem, sobre ele estiveram presentes o maracá (chocalho), uma tiara de miçangas, sementes e penas, o sikatã (que produz fumaça para purificar o corpo), incensos e velas (para iluminar o caminho) e uma muda de Pau-Brasil, que será plantada no parque Jardim América – que corre risco de ser desmatado. “É um símbolo de renascimento, e decidimos plantar ali também como uma forma de resistência ao desmate. O parente foi também um resistente. Por isso, colocaremos uma placa com o nome dele sob a planta”, diz Iauaraté.

Das vozes e instrumentos vieram os cantos e poesias indígenas que embalaram José Januário durante a viagem para o rio de cima. Uma água preparada com pó de guaraná, para dar força aos vivos, foi passada para cada um dos 11 presentes na celebração. Logo no início, o canto de um pássaro cortou o céu sobre a cova preparada para ele. Um detalhe corriqueiro, mas cheio de sentido quando está prestes a fazer a passagem o remanescente de um povo inteiramente ligado à natureza.

FOTO: UARLEN VALERIO/ O TEMPO
Música e poesia foram entoados para a despedida e o recomeço

A despedida foi marcada não pelo luto, mas pela luta. “Que a identidade dele não seja mais roubada, nem a de nenhum índio da América Latina. Que ele vá como indígena, porque nunca foi indigente”, entoou Iauaraté Una.

FOTO: UARLEN VALERIO/ O TEMPO
"Que mais nenhum índio tenha a identidade roubada", disse Iauaraté

Via-sacra extenuante para mudar situação de indigente para indígena

Para reclamar um corpo no IML, um familiar precisa apresentar a própria documentação e levar duas testemunhas. Então, são feitos os procedimentos para comprovar que são parentes consanguíneos e, depois dessa etapa, há o encaminhamento para fazer o reconhecimento. José Januário não tinha irmãos, pais, primos ou quem pudesse fazer isso em Belo Horizonte. Nem mesmo documentação, por isso, a iminência de ser enterrado como indigente.

Desde que soube do assassinato do parente, a socióloga Iauaraté Una se tornou presença frequente no IML, chegando a incomodar. “Estávamos indo tanto lá, que uma segurança quase nos agrediu um dia. Parece que eles ficaram tão irritados com a nossa insistência, que começaram a pedir vários papéis e dificultar esse processo”, conta. Com ela, compareceu, algumas vezes, a advogada Gabriela Rocha, do Comitê Mineiro de Apoio à Causa Indígena. A via-sacra para enterrar José Januário foi necessária porque, após tentar encontrar familiares consanguíneos do morto e não achar, o procedimento do IML é encaminhar o corpo para o sepultamento público.

A justificativa do instituto é que o indígena ainda nem havia sido identificado quando deu entrada. Além disso, era preciso seguir todo o caminho burocrático: tentar localizar um parente de sangue, fazer os exames de DNA que comprovem a identidade do morto, pedir à Justiça autorização para a liberação, expedir a certidão de óbito, fazer o reconhecimento presencial do corpo e buscar documentos necessários.

FOTO: FERNANDA CARVALHO / O TEMPO
Feliz, com as roupas para enterrar o parente, após sua liberação, enfim

Dificuldade em ser reconhecido

José Januário chegou à capital mineira quando tinha cerca de 40 anos. Como viveu na cidade desde então, não se sabe. Por meio de um cadastro feito em um dos abrigos para moradores de rua foi possível constatar que, há cerca de dois anos, ele vivia nessa situação. A certidão de registro no lugar, no entanto, não o identificava como sendo indígena. Mesmo na apresentação do suspeito pela sua morte, no dia 12 de fevereiro, a Polícia Civil disse que a vítima do brutal assassinato não era índio.

“Não é um não-índio que tem que falar o que o índio é. O índio sabe o que ele é e de onde ele veio. Ninguém pode roubar a nossa identidade dessa forma, depois de tudo o que já foi roubado”, diz a socióloga Iauaraté Una. Deve ter sido uma ironia para José Januário andar por Belo Horizonte e se deparar com tantas ruas em referência aos povos indígenas – Caetés, Tupinambás, Tamoios, Carijós, Guajajaras, Guaicurus, Tupis e Guaranis –, e ter dificuldade em ser legalmente reconhecido como tal.

ARQUIVO PESSOAL
José Januário vivia em situação de rua há dois anos em BH

Assim como os moradores de rua encontram no álcool uma válvula de escape, José Januário também recorreu à bebida para lidar com suas mazelas. Quando sóbrio, fazia artesanato, assim como seus parentes indígenas, e há relatos de que em alguns momentos falava a sua língua materna, o Yathé.

Pesquisa. A socióloga Iauaraté Una o reconheceu pelas andanças nas ruas e foi buscar suas origens: tribo dos Fulni-ô, de Águas Belas, em Pernambuco, uma das últimas aldeias do Nordeste a preservar o dialeto original.

“Mas para conseguir enterrá-lo, precisei comprovar a minha própria identidade indígena. Como a Funai (Fundação Nacional do Índio) não segue mais o Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (Rani), tive que buscar a certidão de nascimento da minha avó, registrada como indígena em trânsito, e a certidão de casamento da minha mãe, já que ela não tinha a de nascimento”, relembrou Iauaraté Una. Ela teve que validar os documentos em cartório, mesmo o Ministério Público Federal notificando o IML de que isso não era necessário.

FOTO: UARLEN VALERIO/ O TEMPO
Iauaraté Una se preparando para a cerimônia de sepultamento

Barreiras para a identidade

A questão indígena em Belo Horizonte esbarra na ausência de políticas públicas para essa população, estimada em 3.477 habitantes (segundo o IBGE), e na burocracia excessiva que restringe e exclui o índio de sua cultura, a começar pela impossibilidade de se registrar nomes étnicos em cartório.

O artigo 56, parágrafo único, da Lei Federal 6.015/1973 estabelece que os cartórios não podem registrar nomes que possam “expor ao ridículo o seu portador”, e essa decisão cabe a cada oficial. No caso dos indígenas que vão registrar os seus filhos, na maioria das vezes, o nome escolhido não é aceito.

“Muitos cartórios se negam a fazer o registro de nome índio por preconceito ou por achar que seria vexatório e até pela falta de conhecimento. Dessa forma, eles sugerem nomes considerados não-índios e isso contribui para a perda da identidade e reconhecimento dos indígenas”, explica advogada Poliane Janine de Oliveira, que presta assessoria jurídica ao Comitê Mineiro de Apoio à Causa Indígena.

A estudante de direito Daru Tikuna, 32, da etnia Tikuna, do Amazonas, mora em Belo Horizonte há cinco anos, desde que saiu da sua aldeia às margens do rio Solimões. Na área rural onde residia, eram frequentes os assassinatos de índios, a adição de soda cáustica nos rios para forçar a saída dos povos de suas aldeias, invasões e investidas violentas de madeireiros e de garimpeiros. Já na região urbana, ela também percebe a violência que cerceia os direitos indígenas pelo não-reconhecimento e negativa dessa identidade.

FOTO: UARLEN VALERIO/ O TEMPO
Daru Tikuna veio de sua aldeia no Amazonas para estudar em BH

“A impressão é que o poder público não quer perder o controle sobre os índios. Nós não podemos ser reconhecidos pela nossa etnia, quando você vai em uma escola ou vai fazer uma prova, por exemplo, você encontra todas as opções de cor como pardo, branco, negro, mas não tem indígena”, conta Daru.

A estudante Keyla Thyxaya, 24, da tribo dos Pataxós de Carmésia, na região do Rio Doce, decidiu cursar direito em Belo Horizonte para atuar especificamente com os direitos indígenas. Em um apartamento no centro da capital alugado por jesuítas para ela e alguns primos, Keyla se formou na Pontifícia Universidade Católica (PUC Minas) após conseguir o Prouni. Agora, ela se mudou para Brasília, onde começará o mestrado na Universidade Federal de Brasília (UnB), no próximo dia 7. Mas para ter acesso aos estudos em Belo Horizonte, ela precisou de uma carta de recomendação de lideranças da aldeia ou da Fundação Nacional do Índio (Funai), um procedimento comumente exigido para atestar sua “indianidade”.

“Para você ter acesso é preciso ter um vínculo com a aldeia ou com uma terra indígena reconhecida. O preconceito que eu sofri na universidade foi mais por causa da falta de conhecimento. Algumas pessoas me perguntavam se a gente vivia pelado na tribo ou se eu falo português”, diz.

Cultura. Para dar visibilidade à cultura indígena e amenizar o desconhecimento sobre os povos originais do Brasil, a Lei 11.645 passou a obrigar, desde 2008, a inclusão da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” em toda a rede de ensino, pública ou particular. Contudo, na prática, poucas instituições adotam a disciplina em seu currículo.

A ex-professora Daniele Fischer, 42, atual pesquisadora da cultura indígena, relata que nunca viu isso acontecer em sala de aula. “Eu desconheço - com base em 15 anos como professora,  dos quais 13 na rede municipal, que haja alguma escola da prefeitura que trate do tema de forma ampla e profunda como merece ser tratado". 

No entanto, para as Secretarias, a lei é cumprida. A Secretaria Municipal de Educação afirma que desde 1998 o ensino Afro e Indígena é contemplado nas escolas, conforme determina a Lei 11.645, além de ser distribuído a cada dois anos um kit de literatura que aborda a temática étnico-racial. Já a Secretaria Estadual de Educação informou que o tema é abordado nas escolas estaduais por meio do “Conteúdo Básico Comum” em diversas disciplinas como História e Geografia. Além disso, a pasta afirma que Minas tem 17 escolas indígenas localizadas em sete dos 853 municípios do Estado. 

Censo. A região metropolitana tem 7.979 indígenas, de acordo com o último censo do IBGE. No Brasil vivem 896 mil índios, de 305 povos diferentes e falantes de 274 línguas. Dessa população, 17,5% não fala português. 

Por ser mais próspera, região Sudeste é destino

A maioria da população indígena saiu de suas terras e locais originários fugindo de conflitos e ameaças na luta por seus territórios e também em busca de melhores condições de vida na região Sudeste, considerada a mais próspera do país, segundo a socióloga Iauaraté Una.

Ela entende que a dificuldade em acessar serviços públicos está relacionada à negação de uma documentação que respeite suas etnias. “Aqui, eles vivem nas periferias, em condições precárias de sobrevivência, vendendo artesanato, fazendo pequenos bicos ou participando das ocupações urbanas, na esperança de um terreno para construir um barraco. Existem também alguns vivendo na rua, pedindo esmolas já em situação deplorável, devido ao uso excessivo de bebidas alcoólicas e outras drogas”, analisa a socióloga da etnia Kambiwá.

No ano passado, R$ 694 mil foram aprovados no Plano Plurianual de Ação Governamental para serem investidos em eventos e apoio aos povos indígenas, mas essas ações concentram-se prioritariamente nas zonas rurais e municípios que contam com aldeias e tribos.

Demanda. Uma das principais demandas da comunidade indígena de Belo Horizonte é que a capital não possui nenhum centro de apoio ao indígena, seja para o artesão em trânsito seja para aqueles que vêm buscar um tratamento médico.

Mini-entrevista

O Conselho Indigenista Missionário (CIMI), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, é uma entidade que trabalha junto aos índios de várias aldeias buscando dar apoio a essa população e consolidar os seus direitos. O atual presidente do Cimi, Dom Roque Paloschi, concedeu uma entrevista à reportagem dando as suas impressões sobre a questão indígena no Brasil.

O TEMPO: Ainda há muito preconceito em relação aos povos indígenas no Brasil?

Dom Roque: Há uma avalanche de preconceito e discriminação em relação aos indígenas, o que é comprovado por ataques recentes como ao índio Galdino, em Brasília, queimado vivo em 1997 quando dormia em um ponto de ônibus, a criança indígena de apenas dois anos que foi degolada enquanto a mãe a amamentava em uma rodoviária de Santa Catarina em dezembro passado e o índio cotista agredido este mês em uma universidade em Porto Alegre. Isso revela uma sociedade anti-indigenista, preconceituosa e incapaz de perceber nos modos dos povos indígenas uma alternativa à sociedade em que vivemos hoje.

OT: Como os indígenas que vivem nas aldeias longínquas entendem essa violência?

DR: A questão é muito mais complexa. Há todo um movimento que ataca permanentemente essa população, seja pelos meios de comunicação, invisibilizando a existência delas, seja por meio das leis que não reconhecem suas terras e acabam trabalhando no sentido de extinguir, cada vez mais, esses povos, seja pela reação da sociedade, que os vê como um estorvo. Não há como definir o que eles sentem, porque só quem apanha conhece essa dor. São caminhos de agressão, de violência e de desrespeito à história dos primeiros moradores dessa terra.

OT: Essa violência pode acontecer também no sentido de privá-los de ter uma vida dentro de seus próprios costumes e tradições?

DR: Nós fomos invadindo o que é um direito sagrado deles, não respeitando a sua história e seus costumes e achando que o índio é que tem que se aculturar e se tornar um brasileiro que compra e vende. Eles querem ter o direito de viver, mas não como eu determino a eles ou como a sociedade impõe, e sim, do jeito deles, dentro de seus costumes e crenças.
 

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